quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Lápide - Capítulo 14






Um dia tive asas e escolhi morar aqui
entre os homens que não sonham,
entre os dementes que não amam,
entre os indiferentes que não vivem...

Inês Dunas




THERE`S NO PLACE LIKE HOME!!


Não há maior verdade universal, nesta bola redonda onde vivemos, respiramos e morremos que o regresso ao lar. Não confundir com o regresso a casa diário. Falo do regresso àquele lugar mágico, que nos viu crescer, rir,chorar saltar e pular. Aquele sítio, único local onde regra geral nós fomos verdadeiramente felizes como Dorothy tão bem sabia no feiticeiro de OZ. Como se de certo modo nos fosse possível voltar a entrar no útero e sentir aquela mágica protecção própria de quando éramos crianças e o Mundo não era mais que o quintal de nossa casa ou a janela embaciada em dias de frio Inverno. Ah, o regresso inigualável aos cheiros de cozinha, à naftalina nas camisolas proveniente das quinhentas bolas que a mãe ou a avó atirava para a gaveta. Ah, a casa materna, o invólucro de protecção, o abraço invisível, o porto de abrigo. Nunca devia ser permitido ao humano crescer. Devíamos parar automaticamente todos nos dezasseis anos  e este mundo era gerido como as nossas brincadeiras, como o nosso quarto. Havia obviamente malícia, mas escondida no desespero de não saber o que fazer com ela. Havia obviamente maldade , mas o arrependimento era sempre mais verídico e cem vezes maior e haveria a liberdade própria de deitar a língua de fora ou bater nervosamente o pé no chão em lágrimas de crocodilo.
Eu não posso regressar a casa, sobretudo porque ela já não é pertença da família, que já quase não existe e  o mais perto que tenho do regresso à minha infância são flashes de Tom & Jerry, mesclados com o diabo do coiote...BIP..BIP.
Mas ao meu lado e assim que entramos na localidade ela sorriu. Não conseguiu disfarçar a alegria de voltar a ver os sobreiros de troncos fortes, os campos lavrados e a erva que tomava aqui e ali de assalto o campo visual.
A minha menina, de saia rodada como uma colegial a chegar à terra natal, num acordo de paz com as suas raízes, com os seus sonhos e com o desejo de remissão de pecados e pecadilhos que uma vida de adulta lhe proporcionara. A minha menina, que me caiu no colo e verdade seja dita no corpo todo, quando eu havia perdido o chão que me sustentava...Agora era a minha vez de devolver tão fina borboleta ao seu habitat.
Imaginei momentaneamente, enquanto o cigarro me queimava nos dedos, a minha menina a sair do carro num Jeté Bailarino, em saltinhos com a saia a esvoaçar e as suas pernas maduras a voltarem aos passos de criança. No entanto, nunca percebera porque insistira em vestir a saia na estação de serviço, mas depois de ter visto o resultado final nem reclamei. Percebi que mentalmente ela queria mostrar a quem de direito que ainda era a mesma menina sonhadora, tímida, cristalina e ingénua embora agora num corpo de mulher. Cada um reúne as armas mais convenientes para uma batalha e eu de certo modo tinha a certeza que seria uma batalha ou quando muito uma guerrita tácita de colocar os pontos nos is. Na verdade nenhum de nós sabia como a família reagiria. Mas este era o passo a ser dado, o último passo para ela na redenção da alma e o primeiro passo para mim, no iniciar nova vida, nova vivência. 
Sabia. pelo que ela me havia contado que o pai era uma pessoa difícil e apesar de ela ainda lhe guardar algum receio eu esperava que pelo menos da minha parte houvesse da parte dele alguma consideração por devolver a sua filha ao seu habitat natural, não obstante na mente dele poder ser o dono do corpo da filha. O  homem que usa e abusa do corpo que ele no leito concebeu ou ajudou a conceber. Pensaria ele isso, ou fingiria nem se ter apercebido de ter tal pensamento? Ignoraria ele na mente dele as vezes que ela gemeu no meu colo? As vezes que me beijou, arranhou e se lambuzou?
Ela ia apontando pelo vidro os locais que se lembrava, as casas de amigos, de amigas e eu ia hipnotizado na sua abertura de pernas, no modo como a saia subia cada vez que ela dava um salto no banco. Propositadamente abri os vidros para permitir maior circulação de ar, para dar entrada a uma aragem ou sopro forte e de súbito, ela exclamou:
-Pá como está tudo mudado!
-Tanto assim?
-Sim. Mesmo muito...Repara, esta rotunda não existia...O que estou a dizer? Toda esta rua não existia! Era uma caminho estreito em terra batida...Sabes, às vezes quando ia para a escola eu...
E lá vinham os quilómetros de explicações e confidências pueris, lá vinha a descrição da sua melhor tarde num dia qualquer de chuva e eu que por ser homem, repartindo a minha atenção entre a condução e a abertura das pernas dela , não poderia de facto dar atenção a tão extensa narrativa. Nem queria. Bastava-me olhar de soslaio para o olhar nostálgico e reparar no tremor de voz para perceber que no fundo aquilo era um monólogo saído directamente da alma e o meu "sim...sim...entendo!" continuava activo e repetitivo. Por fim estacou o dedo em riste e quase num grito infantil soltou:
- É já ali! Ao cimo da rua...que caraças...ai meu Deus, ainda existe a casa da Dona Glória.
-Dona Glória? - Interroguei na esperança que o balançar da saia continuasse.
-A velhota dos rebuçados de fruta. Todos os dias lá vinha ela com os rebuçados. Sabes quais eram? Aqueles de papel branco.
Ao diabo com os rebuçados e os caramelos pensei eu entretido a disfarçar o volume das calças. Como poderia explicar a ela que fiquei assim com recordações da sua infância? Isto acabava antes de ter começado!
Subimos a maldita rua e começamos a descer. O já ali demorou pelo menos uns sete  minutos até que no fim da rua lá apareceu uma moradia de dois pisos, ladeada por campos de erva e ao lado um velho baloiço. A casa, toda de pedra granítica metia respeito e parecia ser fria, assim como as janelas pequenas sem varandas, sem cor.
-Será que o meu velho baloiço ainda funciona?
-Não creio. - Respondi aterrorizado ante a perspectiva de a ver de saias a esvoaçar...Não isso era tortura a mais.
Tocou à campainha e aguardamos em silêncio. Eu com cara de enterro, ela com  ar de Disneylândia, divertida e simultaneamente expectante com o que poderia encontrar.
Quando a porta se abriu o sorriso dela desapareceu. Uma senhora já de idade, de cabelo branco como a neve e ligeiramente arqueada estacou o olhar em nós, como se fossemos testemunhas de jeová ou vendedores e desdenhosamente soltou um:
-Que querem?
A minha companheira, ninfa destes meus dias de renascimento, permaneceu uns segundos calada e arriscou um palpite como se estivesse num daqueles concursos televisivos, em que não sabendo ao certo a resposta fica na esperança do Pivot a ajudar:
-Tia Clara?
A idosa sujeita olhou-a demoradamente e muito timidamente, quase sem voz, conferiu:
-Pitareca?
-Sim. - Retorquiu ela com ar de deliciada pela lembrança de apelido infantil
Numa explosão de risos as duas se abraçaram, como se de certa forma o passado ganhasse vida e existência corpórea e renascesse naquele abraço.
-O Pai? 
-Não está aqui Pitareca. Já não mora aqui há uns anos.
-Não?
A idosa encolheu os ombros e apontou para o lado Este da localidade:
-Está no lar. Sabes, eu já não podia tomar conta dele. Ele teve um AVC, exige cuidados e eu já não posso. Desde que a tua mãe partiu..
-Partiu?
-Sim, separaram-se há uns anos...Desde aí eu tenho tomado conta da casa. Afinal ele é meu irmão, mas agora já não posso.
Suavemente, muito suavemente como em câmera lenta os joelhos dela tocaram no chão, num mar de pranto de realidade crua, que as palmas das mãos coladas à face não davam sustento. Finos rios prateados escorriam pela abertura dos dedos como lágrimas de pecado.
-Calma baby eu estou aqui. Agora nós podemos compor tudo e não podendo reparar totalmente o passado, remediaremos o futuro, o nosso futuro e ele, o teu pai, te compreenderá um dia. Verás!
A idosa senhora sorriu após um esforço hercúleo para tentar ouvir o que saía disparado da minha boca, balbuciado em trejeitos de desespero na tentativa vã de conter o choro dela.

Afinal, there`s no place like home even if its not the same anymore!













1 comentário:

  1. De leitura fácil,bem secundado por uma introdução forte, com poema de múltiplas interpretações, tal como todo o texto, não obstante certas referências do autor que evidenciam um grau de cultura, esta crónica de vidas reais imaginárias tocam vários elementos vivenciais. Apaixonante quer na forma e no conteúdo, apesar de em certos capítulos a linguagem, embora sempre sem vernáculo gratuito, seja um pouco exagerada. Personagens bem fortes, sobretudo inteletualmente sendo compreensível a ausencia de factos descritivos, exceção feita ainda que superficial neste capítulo. Escrita limpa, intrigante e apaixonante. Parabéns ao autor ou autores!

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