segunda-feira, 23 de abril de 2012

Três partes de um beijo





ASCENSÃO

No palco quase escuro, uma personagem masculina sentada numa cadeira de madeira, de tronco nu e olhos perdidos na plateia, de braços caídos, como se estivesse adormecido ou pior esquecido. Abaixo das calças de ganga, dois pés frios e despidos fincavam a ponta dos dedos, como que escondendo os calcanhares.
Surge uma ténue luz vinda directamente de uma lanterna. Um pequeno foco de luz, como uma  réstia de esperança na sua face de barba com três dias. 
Não surgiu nenhum sorriso ou choro contido, apenas uma voz ténue num improviso:

" Sou parvo assim esquecido nesta dor. 
  Sou corpo fraco possuído por um estranho torpor. 
  Nada me apetece, nada me enriquece,
  tudo o que tenho desaparece. "

Mexe delicadamente um braço, levanta a mão direita em sofrimento, erguendo o dedo indicador à plateia:

" Sabei que sofro das piores dores deste mundo irado. 
  Sou fruto de amor negado. 
  Triste Ser de coração magoado.
  Mas que querem....Estou apaixonado!"

Cruza com esforço as mãos no regaço, como que a pedir perdão:

" Desde a primeira vez que a vi,
  Acreditem...Logo ali eu sorri
  Filha de embaixador
  E eu pobre agricultor!

Entra em cena a progenitora, de lenço na cabeça e avental roto na frente:

 "Ó Jaime bota juízo nessa tóla
  Que a moça é doutra liga
  Gente fina, de bom costume
  Lá quer saber de cheiro de estrume!

 Essa menina é como uma princesa
 Tudo nela é delicadeza
 Bom vestido, bom cabelo, bons sapatos
 Nada tens que ela mereça!
   
Levanta-se o filho irado, no orgulho despeitado, escondendo a mágoa de tal futuro falhado:

" Falais dela como quem fala de uma alteza
  Acaso achais que eu não sei as coisas?
  Acaso pensais que só entendo de lavoura?
  De rabanetes, de couve, de cenoura?

 Eu sou jovem e ela não me fala
 Condena-me assim ao isolamento
 Á vil incerteza, atira-me ao desprezo
Louco desconcertante neste vil tormento.

A mãe aproxima-se acalmando-o:

" Não és doutor, não és de dinheiro
  Não és Advogado, embaixador ou engenheiro
  És filho de mãe que vende na Praça
  És cria de ninhada sem raça!

 Meu pobre filho rafeiro
 falo-te como mãe e senhora de tudo
 Mesmo com orgulho de seres o primeiro
 Aviso-vos esquecei essa dama.

O filho vira-se de costas para a mãe e para a assistência:

Chorarei mil lágrimas por tudo isto
Embalarei mil mágoas só por ela
Mas não recuarei nesta aventura
Não sem antes lhe dar um gesto de ternura.

Mostrarei a tão nobre dama
O coração límpido de quem ama
e ela verá que sou correcto
Apesar de agricultor, nada alfabeto!

Abraça-se à mãe enquanto cai o pano.




Intuição

Na cama deitada, com longas melenas louras a penderem na almofada de linho, Mafalda confessava a sua angústia a Laura, a criada e confidente:
"
Como tremo na sua presença,
Como estremeço ante aquele olhar
Sempre que passo na praça
Aquele jovem me cativa.

(laura)

Cuidado com vossos pensamentos,
Jovem graça e bem cuidada
As paixões na sua idade são tormentos
Nada compatíveis com família tão estimada.

(Mafalda)

Oh Laura se soubesse o quanto lhe desejava beijar
Aqueles lábios redondos e bem formados
Aquele peito liso e braços torneados
Que digo...Já era bom só lhe falar!

Laura levanta-se e certificando-se que a porta estava fechada, avisa:

Tende tento na língua,
que Heresia é coisa ruim
Nada vejo de interessante
Cheira-me a triste fim.

Mafalda, aperta-lhe as mãos:

" Posso já desejar tanta coisa
  Tudo o paizinho me dá
  Mas este artigo que necessito
  Só o meu coração me dará!

 Entendeis que vos falo de amor?
 sabeis o quanto penso nele
 O quanto lhe queria dizer...
 Preciso de Ti!


A empregada , levanta-se de costas para a jovem e gesticula na direcção da pobre miúda, tentando embalar a tristeza:


Pobre menina que se o seu pai ouve
Pobre criatura por amor impossível enamorada
Pois a coitada não sabe ainda, nem sequer sonha
Que a paixão pura é a todos negada!


Tenho quarenta e dois anos de vida
e mais uns séculos de felicidade perdida
Nunca soube o que é o amor
Mas também nunca me deixaram saber


 Andei assim algo entretida
 Na vida dos outros metida
 Mas afinal, que sei eu da vida
 como posso saber se amor é proibitivo
 Se nada disso para mim  é intuitivo.


Mafalda, aproxima-se da janela e olha em vão a praça vazia no silêncio do manto nocturno:


"Amanhã sem falta lhe irei falar
 Não posso mais este amor calar
 Posso ser jovem, de amor perdida
 Mas não serei parva toda a vida.


Não lhe dizer o que sinto
Isso, cara Laura eu não consinto.
Atirarei sem rodeios à sua frente
Este meu louco amor fervente!


E abraçadas as duas contemplam a praça, enquanto o pano cai.





Tentação

No centro da praça, alheios ao burburinho do negócio que ali se vivia, dos passos perdidos e achados de quem nada comprava e tudo olhava, os dois se quedaram petrificados a curta distância como se faltasse a voz, como se precisassem de um motivo alheio para se falarem, foi o jovem Jaime quem conseguiu articular algo audível:

" Pois bom dia nobre senhora,
  Sempre um prazer a ver por aqui
  Confesso que vem em boa hora
  Algo tenho para dizer a si!


  Sei que sou um pobre agricultor
  Homem de cavalo e sem tractor
  Poucas coisas entendo desta vida
  Nada de fino tenho por medida.

 Contudo, cara dama se me permite
 Antes que a minha covarde boca hesite
 permita-me a ousadia do momento
 de abrir meu coração ao vosso intento...


A jovem ao invés de se quedar ofendida, sorriu-lhe abertamente e retorquiu com um toque de ironia:


 Caro Jaime por modéstia,
 Não me trate por senhora.
 Sou jovem sem pretendente
 também eu precisava de lhe falar urgente.


 Sei da vossa profissão
 e tenho para mim que é nobre
 Homem que trabalha com devoção
 Um futuro interessante descobre.


 Por muitas noites escondi este desejo
 Com receio de meu pai, dos outros e de si
 Mas agora percebo que com esse seu ensejo,
 Perdi meu tempo a esconder minha paixão de si.


Abraçam-se protegidos pelas sombras, para que o pai não visse e com a empregada ao largo, a fingir nada perceber, os dois se beijam nesse novo amanhecer!


----------------Baixa o pano--------------------------


  


  
  

2 comentários:

  1. Adorei a escolha das musicas...e k dizer deste teu belo poetar teatral???
    ja te disse tantas e tantas vezes o quanto gosto de te ler... mas acho sempre tao pouco...es um must :)

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  2. As músicas escolhidas encantaram-me de tal forma que só consegui ler a peça com as músicas...Quanto à peça em si, não consigo descrever por palavras o quanto gostei, está fabulosa Roger :)
    Um mega beijinho*

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