segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O Doce Malandro - Capítulo 1 - Parte 2




"Se tu falas muitas palavras sutis
E gostas de senhas,sussurros,ardis
A lei tem ouvidos para te delatar
Nas pedras do teu próprio lar."

Chico Buarque -"Hino da Repressão"


De pé, de costas voltadas para a presença feminina que acabava de entrar, o jovem estudava uma forma de abordagem, uma nova estratégica, uma ideia que fosse, para não mostrar aos olhares inquisidores da recém-chegada, a mínima sombra de insegurança.
Tinha tido dois anos de preparação para assumir a identidade do amigo falecido no acidente de viação e preparara meticulosamente a operação secreta de tomar a simpatia da tia do amigo, uma senhora viúva, com bastante dinheiro e que lhe possibilitaria fugir da sua terra e lançar-se com segurança numa grande cidade.
De seu nome original Horácio Antunes, aprisionado a um pai tirano e tendo por certo o futuro na agricultura, de sol a sol,  ou quando muito, a companhia que os próprios animais de pastorícia lhe faziam, nos intervalos da alfaia agrícola Horácio aproveitou a tristeza da morte do amigo e enquanto confidente deste, nos seus tempos de escola soube da existência dessa senhora e do facto de já não se falarem, para então delinear um plano. Não era um plano audaz, mas era certamente necessário alguma dose de "lata" e bastante paciência.
Estudou a morada e pacientemente sacava do amigo todas as informações que ele se recordava dela, soube do carácter religioso desta, enfim soube tudo o que podia saber. ou pelo menos achava que sabia.
O que nunca soube, nem tão pouco imaginou foi a presença de uma irmã. Isso mudava um pouco as coisas, pois a Efigénia, ele sabia que não via a família há anos, mas e se esta irmã mantivesse contacto? E se ela soubesse do acidente fatal e da morte dos familiares? Iria ela colocar em perigo a sua curta carreira de vigarista e impostor?
Agora que como Marco Freitas tencionava cair no goto da velha senhora, tentando de certa forma um golpe que providenciasse a sua estadia, esta irmã o colocaria em risco total. 
Claro que havia sempre a possibilidade de ela não saber de nada e de ele poder continuar com o seu plano, mas era um imprevisto e os imprevistos trazem sempre uma enorme margem de erro a qualquer plano.
Uma certeza na cabeça do impostor bradava com todas as forças! Ele não tinha aguentado seis longas horas, quase quebrado numa camioneta ao lado de uma senhora obessa que gemia a cada cinco minutos para agora ser recambiado ou pior, entregue às autoridades. Num sopro de confiança, como um actor na estreia de uma peça, avesso às incertezas do seu talento por parte da audiência, agarrou-se ao seu papel e sem se desmanchar encarou a recém-chegada:
-Bom dia, sei que devia ter avisado. Mas não poderia de forma alguma adiar mais esta visita.
Por uns longos segundos, a senhora manteve-se à entrada da divisão olhando-o com suspeição, até que a custo inquiriu:
-Filho de João e Vera Freitas?
-Eu mesmo, em carne e osso. - Ele tentava a custo estudar o rosto de Marta e tentar perceber se ela engolia a história.
Marta deu três passos em direcção ao rapaz e subitamente abriu os braços envolvendo-o num abraço despropositado mas pleno de ternura:
-Que bons olhos te vejam rapaz. Nem acredito que finalmente o meu irmão ganhou juízo naquela cabeça.
-Oh, sabe como é o pai....-Babulcinou o rapaz sem quase ter tempo de reacção.
-Não foi pela cabeça oca do pai, que ele cá veio, mas sim a mando do bom padre Estêvão.
-Mas como ele está crescido! A ultima vez que o vi era um bebé de meses. Que rapagão te tornas-te, sim senhor.
O sorriso de satisfação na face do jovem era real, mas não se devia propriamente aos elogios da pseudo tia, mas sim ao facto do seu plano estar a correr de feição.
A custo Efigénia levantou-se e também ela se aproximou do rapaz, embora parecesse agora examiná-lo atentamente e com um tom de voz a roçar a ternura, esclareceu:
-Aqui o rapaz está a estudar para padre.
-Na verdade tias...-Apressou-se o jovem a interromper- Já tenho dois ciclos feitos. Ainda não estou propriamente habilitado a dar missa, mas quem sabe em breve...
-Para padre? - Inquiriu a tia mais nova.
-Com a bênção do padre Estêvão, aquele santo...
-Curioso que os jovens hoje em dia, ainda sintam essa vocação! - Exclamou Marta visivelmente maravilhada.
-É uma questão de apelo interior, caras tias. Como se essa fosse realmente a minha missão neste mundo.
-Que bom ouvir um jovem tão decidido nas coisas da Igreja. 
Efigénia, abandonou o exame visual do seu novo hóspede e prontamente apoiando-se na sua bengala de madeira de carvalho, esculpida à mão, avançou até à irmã:
-Tudo muito bonito, mas dentro em breve serão horas de refeição e sempre é mais uma boca para alimentar.
-Mana, não está a pensar que ele... - Marta interrompeu nervosamente, como se receasse a continuação da frase da irmã.
-Mas claro que espero que o cabeça oca do João lhe tenha enviado com dinheiro. Afinal isto não é uma pensão.
-Ai que vergonha Efigénia, o pobre rapaz está a chegar, cansado da viagem e já lhe está a pedir renda?
-Não estou a pedir nada, apenas a precaver se ele é dotado de bom-senso.
-Tias eu...
-Bom-Senso? Oh Efigénia às vezes não sei que pensar de ti. Tens o teu sobrinho que nunca viste, a visitar-te, a querer conhecer-nos ...Oh meu santo Deus, que ideia ele vai ficar de nós?
-Mas tias eu sinceramente... - O impostor tinha sido claramente posto de parte pelas duas mulheres que conversavam como se ele já não estivesse presente.
-A comida não cresce nas árvores! Aliás não é só a comida, é a luz, a água, lavandaria e sabe-se lá o que mais. Nunca tive uma presença masculina nesta casa. Sei lá que despesas mais acarretam.
Como se pretendesse ser ouvido, o jovem bateu uma salva de palmas, exalando uma falsa alegria e pousando delicadamente a mão no ombro da anciã e dona da casa, esclareceu:
-Caras tias, obviamente que eu não vinha para vossa casa fazer apenas despesa. O meu bom pai, pode ter a cabeça oca, mas é dotado de bom-senso e pode-se dizer que teve o cuidado de ser bastante generoso no montante que me destinou para que permaneça entre vocês, sem sobrecarregar de forma alguma o vosso orçamento familiar.
Notando sinais de alívio no rosto de Efigénia, e adorando ser o centro das atenções de momento, continuou a representação:
-Bem sabeis que a vida como padre não é propriamente uma vida lucrativa, mas cumprindo as indicações deixadas pelo meu pai, aproveito a oportunidade para adiantar já algum dinheiro para as compras desta semana.
-Oh meu prezado sobrinho, não fazeis caso.... - Interrompeu Marta, visivelmente corada.
-Não se preocupe tia Marta, a tia Efigénia tem toda a razão. Um orçamento familiar equilibrado é igualmente o garante de bem-estar espiritual e de forma alguma me sentiria bem sendo um fardo para vós. 
Assegurando-se que os olhares da sala incidiam em si e galvanizado pela sua actuação, continuou, retirando apaixonadamente da sua carteira, uma nota de cinco mil escudos, deixando a nota verde com a face de Antero de Quental impressa,bem visível para a curta assistência:
-De modo que deixo ao seu cuidado, tia Marta, pois pelo que vejo é a responsável pelas compras.
Marta acenou negativamente a cabeça com  ar assustada, sendo o jovem prontamente interrompido pela anciã:
-De forma alguma meu jovem. Eu fico com a nota e devo avisar que todo o dinheiro só será entregue a mim, ou essa esbanjadora gasta tudo de uma assentada.
O jovem foi surpreendido com a velocidade com que Efigénia lhe retirou a nota da mão, proporcionando um leve riso de escárnio em Marta, que não se conteve:
-Tratando-se de dinheiro, a minha irmã, só com o contacto visual, rejuvenesce logo dez anos. Nunca vi ninguém tão agarrado ao dinheiro. Sovina mesmo!
-Cala-te! Se não fosse o meu controle tu gastavas tudo só para tratares da imprestável da tua filha.
-Pronto, lá vem o discurso habitual.
-Habitual não. Se fosse habitual já tinhas resolvido a situação.
-Não vamos falar desse assunto agora. 
-Pois bem, vai tratar do quarto de hóspedes, enquanto o bom do meu sobrinho me põe ao corrente das desventuras do nosso irmão.
Suspirando baixinho, o falso Marco gabava-se para si mesmo de ter passado a primeira prova de fogo e ganhava coragem para a segunda prova que se seguiria.
De certa forma, a revelação de que a velha Efigénia era amante de dinheiro, era a base perfeita para o seu plano e satisfeito pelo fio condutor para o seu plano que tal revelação permitia, encarou a idosa senhora com outro ânimo, e sentou-se perto dela, tendo o cuidado de deixar à vista na carteira outra nota de cinco mil escudos.
Esse era o único contratempo que o jovem tinha tido, pois de uma assentada preparava-se para deixar fugir todo o dinheiro que possuía. Mas de qualquer forma era o suficiente para ir entretendo as tias, até conseguir forma de arranjar mais algum.
A única coisa que não havia percebido, no meio de toda a conversa com as "tias" havia sido a menção à filha de Marta. Quem seria ela?








1 comentário: