terça-feira, 11 de setembro de 2012

O Doce Malandro - Capítulo 1 - Parte 4




Este ano vai ser o seu ano
Ou senão, o destino não quis
Ah,eu hei-de ser
Terei de ser
Serei Feliz.

Chico Buarque : "Ópera do malandro"




Anunciada a hora do jantar, ele caminhou absorto, entretido nos delírios do seu pensamento, memorizando os avanços da triste criatura que ousava zombar de si. De certa forma agreste, a atitude dela tinha contudo o condão de o deixar nervoso e irritado, não propriamente um irritado de raiva, mas um irritar de um suor frio que o aproximava ao invés de o afastar dela, que o atraía como um potente íman e ele qual corpo magnético, tendia a ser puxado para a aura dela, indefeso, maleável, absorto.
Na verdade, tinha para si, que jamais na sua curta vida conhecera alguém assim, que se dera ao desplante de o intrigar e o deixar sem fala. Odiava quando lhe retiravam a ultima fala, o ultimo pio, o ultimo acorde. Treinara desde sempre para ser o senhor da sua orquestra, o Deus de todas as notas, o diapasão maior na escala dos seus lábios e de repente, aquela criatura roubava-lhe o palco, estragava-lhe a acústica, desafinava-o nas notas baixas de melodias improvisadas, próprias para se alojarem como ouro, no ouvido de quem as ouvia.
Efigénia tivera o condão de tornar a mesa do jantar mais agradável do que era costume, não só para cativar o recente hóspede, como igualmente para conferir um Status, para mostrar que ali havia brilho e mordomia.
A disposição dos lugares não surpreendeu o jovem hóspede, dado que colocado ao lado da a lado com a anfitriã , servia perfeitamente para se colocar a jeito perante perguntas incómodas mas sempre cirúrgicas, de quem quer saber ao certo até que ponto aquele jovem lhe poderá servir de rendimento. E em caso afirmativo, durante quanto tempo iria ele pagar o alojamento e providenciar a entrada de rendimentos. E de certa forma isso o preocupava, dado que inevitavelmente surgiriam perguntas sobre a família, sobre acontecimentos antigos, tias e primos afastados e ele não estava de forma alguma preparado para responder a essas questões. É um facto, pensava ele enquanto tomava o seu lugar à mesa, que uma resposta mal dada, ou a hesitação num nome atirado para cima da mesa, poderia provocar a desconfiança entre os presentes, mas ao tomar o nome de alguém que não era, era um risco a que estava disposto a correr.
Não sendo propriamente um mestre na arte da etiqueta, dado que ele Horácio nunca passou de um filho de lavrador, ao contrário do amigo Marco, a quem ele roubara o nome após o falecimento secreto deste, tinha tido algumas noções básicas de como estar à mesa e aprendera o golpe do guardanapo, sacudido ao de leve e pousando entre as pernas, num filme Francês a preto e branco que vira na RTP 2. 
Encenou o seu truque, angustiado por não ter sido reparado pelas duas senhoras e então reparou em algo que o deixou nervoso. Ao seu lado, um prato vazio, o guardanapo impecávelmente dobrado, anunciava o seu pior receio. De que provavelmente aquela criatura irritante se sentaria a seu lado.
A simples ideia de a ter presente, num momento em que mais necessitava de coragem e determinação para evitar rasteiras ou perguntas em que se iria ter de concentrar deixavam-no terrivelmente desconfortado.
De anel espesso e brilhante no dedo indicador, a idosa senhora sorria espantada diante da repentina palidez do jovem:
-Meu caro Marco asseguro-lhe que a minha irmã pode ter os seus defeitos, mas é uma excelente cozinheira. O frango assado nas mãos dela, ganha novos temperos acredite!
Marta que se mantivera diante da mesa, observando-o em silêncio apressou-se a inferiorizar o elogio:
-Não é bem assim, dado que esta sua tia controla todas as miligramas dos condimentos, mas como hoje é dia de festa lá abusei um bocado da sua boa vontade. - A sua voz era acompanhada por um olhar satírico para a anfitriã.
-Não é dia de festa, mas o meu sobrinho deve estar cansado e calculo com bastante apetite. Afinal a viagem ainda foi longa.
Era a sua deixa favorita para quebrar o gelo e ganhar algum avanço na história e o falso Marco percebeu que era altura de agradar:
-De todo caras tias. Na minha idade estas viagens não cansam, aliás bem pelo contrário, estou em crer que abrem horizontes e como é raro sair daquele pequeno burgo onde os meus pais fizeram a vida, gosto de aproveitar para "beber" todas as nuances da paisagem que desfilava sob o vidro do autocarro.
-Pois provavelmente não se lembra, mas os seus pais eram pessoas viajadas. pelo menos o seu pai era de certeza, pois ele amava conhecer o País. Agora, as pessoas habituam-se e certamente essa Eva...
-Mana, deixe lá a pobre senhora em paz. Como ele disse, não tem culpa de erros dos pais.
-Isso é verdade tia Marta. De facto não tenho. Mas creio que as diferenças entre os homens, são pormenores pouco importantes aos olhos do Senhor!
-Bendito seja a sua boa vontade. - Respondeu de pronto Efigénia.
Ele escolhera o momento certo para vestir a personagem e desta forma inteligente contava de certa forma rematar qualquer chance das conversas à mesa sofrerem viagens ao passado.
Colhendo o sorriso de concordância das supostas tias, desviou o olhar dos candelabros de prata estrategicamente colocados bem á sua frente, para que a dona da casa possa manter o Status e concentrou-se nas acentuadas rugas da idosa tia. Percebia pelos sulcos rasgados na face dura e expressiva que a sua vida não deveria ter sido fácil, nem tão pouco consentânea com aquilo que ela imaginava de si mesma. Já marta, apesar de ser relativamente baixa, revelava sinais faciais de constante preocupação e meditação e de certa forma isso o colocava em sentido em relação a ela. Horácio, o falso Marco para as tias, desconfiava de mulheres meditativas e absortas em si mesmas. Eram por natureza desconfiadas e provavelmente tinham o péssimo hábito, de nas horas mortas, recorrerem a frases e conversas ditas para as analisar depois friamente e então no sossego da sua mente, encontrar as mil e uma contradições que inevitavelmente ele um dia diria. Bom grado para ele, que Efigénia a colocara como responsável pela cozinha e outras tarefas domésticas, assim podia ser que se mantendo ocupada demoraria certamente mais a encaixar as peças na sua mente e a descotinar puzzles  mentais.
-Mas então, poderemos o tratar por Sr. padre? - indagava Efigénia, procurando um tópico de conversa para inicio da refeição.
-Bom, não necessariamente tia. Apesar de ter orgulho no que sou, não pretendo de forma alguma relegar os nossos laços familiares- Afinal já passei afastado da vossa presença, por imposição paternal diga-se em abono da verdade, tempo demais.
-Com toda a certeza querido sobrinho. - Respondeu a tia mais velha maravilhada
-Ai menino que eu não podia ouvir coisa mais linda. As suas missas devem ser únicas. - Concluiu Marta enquanto colocava a travessa na mesa.
Afinal, pensou ele entretido nos seus pensamentos, encarnar a personagem de um padre servia-lhe como uma luva. Tudo corria bem e a primeira fase , a conquista das tias, revelava-se agora uma tarefa perfeitamente acessível aos seus dotes oratórios.
Cheio de alegria, principiou a abrir o vinho, com toda a cerimónia que a tarefa possa ter. Aquele era o seu momento, um dos seus grandes momentos e nada poderia colocar em causa este sucesso retumbante.
Sentiu a rolha ceder sob o saca rolhas a imitar o tom prata, deixando como vira muitas vezes no cinema, a garrafa "respirar" e de sorriso rasgado principiou a servir os copos, respeitando a hierarquia familiar.
Com a tesoura de trinchar na mão, Marta deu início às hostilidades, não conseguindo esconder dos presentes um certo nervoso miudinho, evidente no tremer da mão que segurava a tesoura:
-Algum problema Tia Marta? - Sondou o recente hóspede.
-Não. Tudo está bem é só que...
-Não está nada bem! Como de costume a desmiolada da tua filha ainda não desceu. - Ripostou Efigénia num tom de voz agudo
-Oh mana, deixe-a estar. Sabe que estes jovens de hoje...
-Sem educação e sem respeito é o que eles são. Cambada de ingratos que...- Efigénia calou-se abruptamente recordando-se que ao seu lado o falso padre era um jovem.
Horácio decidiu partir o gelo e defender-se do melhor modo que encontrou:
-Por vezes esquecemos como éramos no passado. A rebeldia é própria de uma certa idade e com o tempo tende a diluir-se, a eclipsar-se. Talvez nos tornemos mais calados, menos sonhadores. Mas tia Efigénia é nesta altura que se fazem escolhas e se traçam caminhos. Eu por exemplo, fiz a minha escolha!
-Escolheu muito bem, abençoado seja o Senhor.
-E no entanto ninguém me forçou a tomar esta decisão. Por vezes demoramos mais tempo a descobrir o nosso caminho mas Deus está atento aos seus filhos.
-E com sorte pagava-lhes a Faculdade!
Os seis olhos presentes na sala de jantar, voltaram-se para a jovem que acabara de entrar e decidira entrar na conversa. Como habitualmente em Verónica era uma entrada em grande:
-Tenha juízo menina que falamos de coisas sérias. - Ralhou Efigénia.
-Talvez tenham falado. Pois desconfio que falavam da minha pessoa e isso não me parece assim tão sério. - Respondeu ela exibindo o seu sorriso sarcástico.
Humedecido por tal entrada, não evitando algum embaraço, Horácio assistiu ao modo calmo e tranquilo que ela usou para se sentar ao pé de si e como se fosse bruxa ou adivinha, repetiu o mesmo truque de guardanapo que ele usara minutos antes.
Marta por seu turno, mantinha-se calada, envergonhada do à vontade da filha diante da presença de quem lhe dava um quarto e comida.
-Vamos mas é comer, antes que essa lambisgóia faça arrefecer o frango.
Verónica preparava-se para lhe responder, mas por imposição de um olhar de clemência da mãe, anuiu e conteve a resposta:
-Pois então, querido sobrinho, vem ao Porto salvar almas?
-Eu...eh, bem sim, pode-se dizer que sim.
Horácio estava uma vez mais perfeitamente baralhado. A maldição de ficar assim, sem qualquer fala diante de tão irritante criatura.
-É mesmo verdade que é padre?
-Porque duvida? - Horácio principiava a ficar em choque.
-Curioso um padre não ter a bíblia consigo.
Colhido de surpresa, Horácio deixou cair pesadamente o garfo sobre o fino prato de louça, diante da face espantada de Efigénia. Dirigiu à idosa anfitriã um sorriso amarelo e evitando um contacto visual com a criatura a seu lado, pensava numa resposta, murmurando entre dentes:
-Merda, porque não me lembrei da bíblia? 
Os pequenos detalhes, como Horácio perceberia depois, são a fina separação entre o sucesso e o fiasco.

(continua)




3 comentários:

  1. Mais uma fantástica parte de uma história que será um sucesso :)

    ResponderEliminar
  2. Excelente blog...de muito bom gosto e riqueza. Parabéns! Abraço! Sigo-te!

    ResponderEliminar
  3. Beto, Grato pela sua visita, e ainda mais pela sua atenção. Um imenso obrigado!

    ResponderEliminar