sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O Doce Malandro - Capítulo 1 - Parte 5



" Quero pesar feito cruz
Nas tuas costas
Que te retalha em postas
Mas no fundo gostas
Quando a noite vem..."

 Tatuagem : Chico Buarque


Não podia ter uma ideia de quanto tempo esteve ali, sentado à mesa da sala de jantar, diante das falsas tias a tentar reagir à provocação da jovem que tanto o incomodava.
Se minutos antes tinha o palco montado, as luzes ao rubro e o publico na mão, um pequeno detalhe, esse precioso detalhe cuspido como veneno da boca mordaz da infame jovem, o deixara de súbito sem reacção.
Provocatóriamente sentia o sorriso dela escarrapachado na face pálida, como a dizer " Apanhei-te"!
Mas ele era o grande Horácio, um ser que absorve identidades, que se multiplica em personagens de um só rosto. Ele era o génio que assumira a identidade de um amigo falecido em acidente de viação e que usava o desconhecimento das tias sobre esse facto  para se passar pelo jovem falecido e assim abandonar a sua terriola e o lançar em mundos e vivências mais consentâneas com a sua fome de sucesso e poder.
Se és um padre, porque não andas com uma bíblia  tinha sido a observação mordaz que ela atirara para cima da mesa, talvez na tentativa de o desarmar, ou quando muito de tentar uma piada, mas na verdade colocava em risco a sua história perante as tias. 
Talvez tivessem decorridos dois minutos, ou quem sabe bem menos, ele não tinha a consciência do tempo, até que respirando fundo, exibiu um falso sorriso de satisfação, como se a menção a algo que ele deveria usar, lhe desse algum gozo, e acarinhando o guardanapo no colo, articulou:
-A Verónica, segundo creio está a estudar, correcto?
-Sim. - Atirou ela secamente.
-E já tem ideia do que pretende seguir na vida profissional?
-Eh lá, está a mudar de assunto. Não me respondeu à minha questão.
-A menina tenha juízo nessa cabeça. Falar de um livro santo assim à mesa não é nada de bom tom.- Sentenciou a dona de casa, como que receando uma resposta do jovem padre.
-De todo Tia. penso que é bom os jovens começarem a mostrar interesse em assuntos da Igreja. 
Sempre com um sorriso plastificado, mas bem conseguido, Horácio Virou-se para a jovem:
-De forma alguma estou a fugir à sua questão. Peço apenas que me responda.
-Bom eu gostava de seguir medicina.
Por uma curta fracção de tempo os dois se entre olharam, tendo ela notado o seu sorriso plastificado a ganhar forma de sorriso vitorioso:
-Então, assim que tirar o seu curso, toda a gente saberá que é médica, pois a avaliar pelo que me disse, irá andar de estetoscópio ao pescoço em todas as alturas....Certo?
A Dona Efigénia soltou uma risada de satisfação, e após um curto aceno de cabeça na direcção da jovem, claramente em sinal de reprovação, apertou as mãos em sinal de oração:
-O meu bom sobrinho pode fazer a honra da oração à refeição?
O jovem Horácio, ainda mal tinha saboreado a vitória do seu primeiro confronto e logo era chamado para outro teste. Talvez, de facto a ideia de assumir o papel de um jovem padre acabado de ser preparado para o contacto com o seu rebanho de fé, não tivesse sido a melhor das ideias. Poderia ter optado pelo mais fácil, jovem estudante à procura de uma melhor escola no Porto, com vista a seguir um curso de respeito e sustentável, mas ao saber por parte do falecido amigo da devoção católica da tia rica do Porto, não hesitou em seguir esse disfarce.
E agora, ele que nunca tinha entrado numa missa, ou tão pouco assistido a aulas de Religião e Moral na escola, deparava-se com um momento para o qual não tinha a menor vocação.
Contudo, era imperioso manter o disfarce a todo o custo e esforçou-se para se recordar de algo que pudesse ter ficado na mente. Assumindo uma atitude série, juntou as mãos, entrelaçando os dedos e com um tom de voz solene, iniciou:
-Meu Deus, tu que criaste o céu e a Terra e nós homens para procedermos segundo a tua vontade. Tu que nos ofereces-te a boa vontade e amor entre os homens, olhai por esta família nos conduzas na vossa infinita sabedoria.
A receio abriu um olho, numa olhadela rápida a Efigénia e congratulou-se pela anciã ter os olhos fechados. notou contudo um esgueirar de lábios, sinónimo de prazer, sinónimo de que de alguma forma ele esteve à altura:
-Vamos agora jantar, que nem só de oração vive o homem.
-Tem razão meu sobrinho, o corpo também precisa do seu conforto.
-Sem dúvida Tia e se me permite deixar arrefecer este repasto, pode ser sinal de pecado.
Entre risadas tímidas, a irmã de Efigénia servia com vontade os pratos e de certa forma o jantar correu sem sobressaltos até à hora da sobremesa.
Verónica, que após a piada do estetoscópio se mantinha estranhamente calada, pareceu acordar do seu estado adormecido. Atirou à laia de informação, algumas considerações gerais sobre o seu dia a dia ou sobre as aulas, sempre acompanhando com algum interesse qualquer gesto que Horácio fazia e pela altura do café, como não se contendo, enquanto o jovem avançava à sua falsa tia ideias e projectos que planeava realizar sob o bom nome de Deus, ela pousou delicadamente a mão sobre o seu joelho.
Repentinamente e pela terceira vez desde que a conhecera Horácio quedou-se quieto e calado, não sabendo como reagir à provocação da jovem.
Distraidamente e incomodado diante da hipótese da tia se aperceber, optou por colocar o guardanapo em cima da mão dela, de modo a pelo menos ocultar o à vontade da jovem.
Contudo e para seu grande sofrimento, a mão que lhe estacionara avidamente na perna, principiava a subir, e o nervoso miudinho acercou-se do jovem que exasperava para que ela desistisse.
Sentado, de pernas juntas, mais hirto que um cadáver, evitava o olhar, até que percebendo que Efigénia debatia com Marta a ementa dos próximos dias, vendo uma aberta nas atenções das duas que até aí sobre ele caiam, reagiu prontamente, afastando a mão dela e quase sem pensar, interrompeu em alta voz:
-Tia, não se esqueça que eu participo financeiramente do orçamento.
-Sim, meu caro sobrinho, eu não me esqueço. Mas convenhamos que mesmo contando com a sua parte, não é propriamente uma fortuna e hoje em dia temos de ter as contas bem equilibradas. Estes anos 80 são tão diferentes do meu tempo.
-Compreendo tia, mas mesmo assim, confio na sua sabedoria da gestão do orçamento.
Numa risada estridente a jovem ergueu-se e limpando apressadamente a boca no guardanapo, despediu-se:
-Perdoem-me mas eu já não aguento tanta graxa, mesmo que ela tenha aspecto de santa. A minha paciência tem limites.
-Não seja ingrata menina, afinal....
-Só uma cega não percebia que este bem falante tem cheiro a esturro.
Evitando o confronto directo, Horácio aguardou que ela se retirasse, exibindo uma bem treinada máscara de desplante, quando no seu interior fervia de raiva.
"Esta gaja vai ser um problema, tenho de ter cuidado e sobretudo de conseguir rapidamente mais dinheiro. Enquanto for entrando dinheiro a velha não se vai dar ao trabalho."
-Oh não fique assim, padre. Eu sei que é minha filha, mas às vezes tem um génio.
-Ah? Oh sim, dona Marta não se preocupe. Creio que foi a falta de atenção que a fez explodir.
-Atenção o tanas. Essa mimalha precisa é de um par de tabefes.
Escondendo o sorriso sarcástico ele segurou o que ia dizer e habilmente mudou de assunto serenando os ânimos. 
De qualquer forma, a missão começava aqui 







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