sexta-feira, 16 de novembro de 2012

O Doce Malandro - Capítulo 2


"Almejo a sabedoria das árvores,
  Em força de raiz milenar....
  Ser feliz é apenas ter onde pousar"

Inês Dunas: Livro "Encontros de Raspão" - "Polinização e Clorofila"



O fino orvalho matinal, não o demoveu do seu primeiro contacto com a vida naquela cidade. Saindo sorrateiramente de casa, deixando as tias entregues ao cuidado de Morfeu e de todos os sonhos, atirou-se na aventura de secretamente estudar um modo de angariar mais dinheiro.
Havia traçado um plano mental, de forma a poder dar continuidade ao seu plano, iniciado meses antes de se passar por um sobrinho falecido em acidente de viação das ricas tias e simultâneamente abandonar uma vida destinada à pastorícia perdida numa terrazinha do interior.
Assim, deixou de ser Horácio, nome de baptismo e passou a assumir o nome do falecido Marco. Deixou de ser um pastor sem futuro, para encarnar num padre recém formado e assim cair no goto da tia beata.
Talvez fosse um plano ousado, dado que inevitavelmente comportava os seus inúmeros riscos,mas para ele era a única chance de mudar de vida e tentar um futuro mais consentâneo com aquilo que ambicionava.
Nunca tinha estado numa grande cidade e  de certa forma, a invicta cidade com as suas gentes díspares e de todos os estratos sociais, correspondia àquilo que ele imaginara. As oportunidades eram de quem as aproveitava e ele ambicionava ser o gajo certo para essa missão.
Havia uma série de coisas que ele precisava de fazer e alguns assuntos a tratar e ele tratara de mentalmente estabelecer as tarefas pelo seu grau de prioridade. Durante o jantar, na noite anterior, quase tinha sido colocado em xeque pela idiotazinha da sobrinha de Efigénia, pelo que embora tivesse sabido sair da situação, iria necessitar de uma bíblia, isso era certo. Aliás, pensou ele estacando de repente no passeio irregular, o que ele precisava era de aperfeiçoar a sua oratória, não fosse a velhota sempre o incentivar a rezar à refeição. Precisava portanto de "beber" um pouco de cultura eclesiástica. Algo que não lhe demorasse tempo, mas que lhe permitisse afastar quaisquer dúvidas em relação ao seu disfarce.
Na passadeira larga, da Avenida esburacada, aguardou com as mãos nos bolsos que o sinal para peões passa-se a verde, e perdido nos seus planos, atravessou a avenida afastando-se o mais possível do quarteirão onde residia.
Naturalmente ele iria iniciar o seu modus operandi que tantas vezes usaria ao longo de toda a sua vida. No fundo, se ele tinha um plano para colocar em ordem, se ele precisava de pensar, se ele precisava de cuidadosamente preparar os seus passos, precisava de um local onde pudesse estar tranquilo sem levantar suspeitas ou atenções. E que melhor locar do que um café? Afagando o queixo em sinal de aprovação dos seus pensamentos, contornou  o Hospital de Santo António, desceu para os Clérigos, não resistindo a olhar demoradamente a Torre dos Clérigos, Ex-Libris da Invicta e desceu pausadamente até aos Aliados.
Não faltavam cafés, onde pudesse se sentar e traçar as ideias e prioridades do seu plano, mas o problema daqueles cafés, era o facto de serem ainda bastante perto de onde residia e podia dar-se o caso da metidazinha aparecer e estragar-lhe o seu conforto.
Não, pensou ele distraidamente, o que ele na verdade precisava era de ir para bem longe das imediações, de se afastar olhares inquisidores que o pudessem reconhecer. Mas para onde ele iria, se pouco ou nada conhecia da cidade?
Subitamente,veio-lhe à cabeça a solução para todos os seus problemas. Olhou demoradamente para a entrada da Estação de S,Bento e sorriu com prazer. Sabia o que tinha de fazer!
Um pouco à pressa, meteu a mão no bolso tacteando as pequenas moedas que possuía e esperançado que tivesse o suficiente para um bilhete de comboio avançou.
Estava contente consigo mesmo, se o problema dele era sair da vizinhança de forma a evitar encontros que o poderiam enervar, então fugiria. Apanharia um comboio, saíra na primeira estação, procuraria um café, estudava o seu plano e o modo correcto de conseguir tudo aquilo que precisava para o realizar e não teria o receio de se perder, pois bastava-lhe apanhar o comboio de volta e regressaria ao local de onde partira. Em suma, na sua mente, o plano era genial.
Sem mais demoras, deu os 150 escudos, apressou-se a correr para a linha 1 e entrou no comboio uns minutos antes dele partir.
A felicidade é sempre um estado de espírito inebriante e na certeza de que ele estava a ser bem sucedido, esfregou as palmas das mãos de contente, e apesar da paisagem ser tentadora, quando deu por ela já se encontrava na gare de Campanhã, admirado por a viagem ter sido tão curta. Não fazia ideia que a estação era assim tão perto e prontamente saiu para o exterior em busca do tal café.
Saiu sorrateiramente, de modo a não dar a entender a quem o visse, que era um completo estranho na cidade e adoptando falsos maneirismos de citadino experiente saiu para o exterior, atravessou a rua, comprou à pressa uma sebenta preta e entrou no primeiro café que viu.
Era um espaço relativamente pequeno, não mais que 5 mesas e um balcão e àquela hora matinal, encontrava-se livre de clientes.
Pediu um café, reforçando o termo cimbalino, como tinha ouvido que se dizia ali, motivando o riso sarcástico da mulher atrás do balcão:
-Quer um café?
-Sim, um Cimbalino normal.
-Um quê?
-Um Cimbalino. O café da terra pelo que ouvi dizer.- Afirmou ele de nariz empinado
-O café da Terra? Ó amigo a menos que seja "Mouro", já ninguém pede um café assim.
-Mouro?
-O que a Filomena quer dizer, é que só os Lisboetas e mais as suas bicas é que gostam de nos "picar" com esses termos.
-Ah, pois eu julgava...Hum, mas seja, um café normal.
Aqueles míseros segundos bastaram para o tirar do sério e de certa forma enervaram-no bastante. Mais do que nunca teria de se habituar àquela cidade, teria que ser um um filho da invicta, um Portuense de gema e de súbito a vontade de se sentar e traçar planos desvanecera-se. Não iria fazer daquele antro sujo o seu Quartel-General. Não iria voltar a ser gozado pela mulher gorda do balcão. Ah não. Definitivamente não tinha sido uma boa ideia "estacionar" naquele café.
Ainda irritado, pousou a moeda em cima do balcão e preparava-se para sair quando reparou no jornal em cima do balcão. A fotografia que lhe chamou a atenção encimava uma notícia qualquer sobre uma Igreja e mesmo a contragosto, mesmo receando ser gozado de novo, não resistiu a perguntar:
-Que igreja é esta?
-É a Igreja do Bonfim. Inconfundível pela escadaria.- Respondeu a mulher com ar de gozo.
-E é perto daqui? - Indagou a medo.
-O jovem não é daqui, pois não?
-Não. - Admitiu ele desesperadamente.
-Ah, está explicado então. O amigo só tem de subir esta rua. A igreja do Bonfim fica lá em cima. - Filomena espetou um dedo para o alto, como se fosse possível ele ver, para além das paredes do café.
-Obrigado.
Saiu rapidamente do café e apressou-se a subir a íngreme avenida., com a convicção de que para ele , o Porto era todo aos altos e baixos, como se fosse uma enorme montanha russa, o que de certa forma o irritava, pois toda a sua vida até esse momento tinha sido passada nas encostas das montanhas, a pastorear cabras. Mas no fundo, era um pequeno sacrifício a fazer para ter direito a tudo o que pretendia.
Como uma criança no dia de natal a experimentar os seus brinquedos novos, sentou-se num café com vista para a larga escadaria da igreja e então de um modo muito solene abriu o caderno e passou a enumerar, com redobrada ansiedade os pontos do seu plano.
Obviamente que independentemente de tudo o resto, o ponto número um seria sempre o dinheiro. 
Não viera propriamente bem abastecido de dinheiro, dado a sua família ser gente humilde e impossibilitado de pedir emprestado ao pai, a quem teria forçosamente de explicar para que precisava do dinheiro, reuniu o máximo que conseguiu e esse máximo estava quase esgotado. Sabendo que o dinheiro era a única forma que tinha de manter a tia Efigénia feliz e pouco pensativa, teria de arranjar um meio de se abastecer. A seguir vinha então a compra da bíblia e de um ou dois livros de teologia para mostrar que se importava.
Talvez isso fosse exequível com outras formas de ter dinheiro. Pensando bem no assunto ele poderia perfeitamente passar por jovem estudante de teologia ou quase formado padre e simultaneamente exercer qualquer outra ocupação que lhe permitisse tirar algum rendimento extra.
O lápis de ponta fina, rodava-lhe nos lábios, e extasiado com este pensamento meditou um pouco sobre ele, por fim mordendo o lábio inferior afastou a ideia. Ele não viera para o Porto para trabalhar. Ele viera para ganhar dinheiro e ser um citadino com acesso às coisas boas da vida. No fundo, ele tentava justificar aquilo que sempre pensou. Ele havia nascido para ser rico, para saborear a vida e não para uma vida de sacrifícios.
Olhou novamente de relance a escadaria da Igreja e encolheu os ombros. Ali seria o principio de tudo. Certamente haveria um padre lá, podia cultivar amizade com o desejo de aprender e saber mais e usaria em casa da tia as ideias do padre.
Satisfeito, escreveu na sebenta à frente do ponto 2. Bonfim...Aproximação  e sorriu momentaneamente de felicidade diante de uma tarefa cumprida.
O dinheiro, esse ponto 1, era mais difícil e iria obrigá-lo a estudar bem.
Deliciado, esticou as pernas, acabou o seu segundo café, de olhar estático na Igreja e preparava-se para se retirar quando ouviu uma voz:
-Caramba, nem aqui me vejo livre de si?
A cara de estupefacção, a face de verdadeiro assombro que exibiu diante de Verónica que o olhava com ar chateado, deveria ter ficado perpetuada para todo o sempre:
-O que fazes aqui?
-A cidade é de todos ó Totó e além do mais eu estudo nas redondezas. Mas e tu que fazes aqui?
Como um punho fechado atirado à boca do seu estômago, ele sem vontade de sorrir, ou sequer de falar murmurou,  apontando para a igreja do Bonfim:
-Tenho de ir ali!
-Ah claro. Só podia imaginar que iria logo correr as igrejas todas da paróquia...enfim!
Ele ia articular algo, mas o seu maior cuidado prendia-se em tirar a sebenta preta da mesa:
-Hum, não tens bíblia mas tens um caderno. Posso ver?
Todo ele tremia num misto de ódio e receio, uma mistura explosiva que lentamente o fazia perder o controle de si mesmo:
-Não. Lamento mas só a mim diz respeito - Articulou ele, guardando rapidamente a Sebenta.
-Então o padre tem segredos? Isso é muito bom.
-O que fazes aqui sozinha? Não tens mais aulas?
Ela sorriu-lhe sarcasticamente e em jeito de troça, respondeu:
-Vim fumar um charro e engatar um gajo bom. Estás interessado?
Sem saber o que dizer ou como reagir ele levantou-se desajeitadamente, virando a mesa e atirando a chávena, o pires e o porta-guardanapos ao chão.
-Calma jovem. Eu não mordo. - Atirou ela num tom divertido.
Vendo o desconforto dele, ela continuou:
-A menos que queiras. Não me importo de te dar uma dentada.
Como se tivesse os pés atados, ele cambaleou até ao balcão soltando desculpas, fugindo como se receasse pela sua vida, ainda atempo de a ouvir soltar uma ultima provocação:
-Estava a brincar ó totó. Meu Deus que gajo mais quadrado.
Como pode a vida ser injusta, ele que tudo fez para evitar este encontro, como se no seu íntimo adivinha-se que podia acontecer. Ele que apanhou um comboio para fugir dela, que tentou fugir, irónicamente só tinha ficado mais perto dela. E se ela estudava por ali, decerto que colocaria em risco o seu segundo ponto do plano. Teria de descobrir uma nova Igreja.


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