domingo, 13 de setembro de 2015

A Saga de Arkhan - Pretorius -Capítulo 4




Em Arkhan uma meia verdade
é uma mentira mastigada e engolida
Um pedaço de carne seca
transformada em Saga Maldita.

Cornelius Zvar - Conselheiro do Imperador - Manuscrito XX- Linha 6



ZVAR

Na sala fria do castelo imperial de Orgutt, logo  após os dois generais a terem abandonado,o conselheiro  ignorando o ar de felicidade do seu superior , baixou os braços e acercou-se da janela, onde os primeiros raios de sol do início da primavera conduziam a sua mente para longe daquele castelo de pedra, para outras épocas e outras alturas. devolvendo a sua alma à pureza dos tempos do seu clã.
Pousando a sua mão enrugada no parapeito de pedra trabalhada, concluiu para si que nesse tempo e o Mundo tal como o era dado a conhecer não carecia de grande explicação ou de estudos de grandes pensadores. Tudo era intuitivo e sem necessidade de grande preocupação que não fosse a subsistência e a sobrevivência. Vivia-se, caçava-se e morria-se ao sabor da vontade  dos bons deuses e esse era o papel da humanidade no mundo. Tudo era fácil de entender e por vezes longo a se viver. Porém o espírito intrincado da humanidade e a sua propensão natural para a asneira. para a cobiça e para a necessidade de poder veio alterar tudo e de certa forma enfurecer continuamente os deuses, abrindo os portões negros da dor, da inveja, da cobiça , do ciúme e sobretudo da mentira.
A mentira é veneno de uma cobra, uma víbora, um ser rastejante e imundo, de pele tão fria como a neve no inverno, cuspida por uma  língua bifurcada entre falsa modéstia e o desprezo pela honra mascarada de  meias verdades. Um veneno com uma força incomum, tremendamente eficaz mas de morte lenta. A mentira instalar-se-ia na mente , tornaria a vítima insensível ao outro semelhante, amarfanhando-lhe a honra e a moral e quebraria a capacidade do homem, dominaria a sua consciência e impediria o homem  de se voltar a ligar aos Deuses e então só aí, o homem morreria.
A culpa dos seus devaneios devia-se  a Bradus, o homem da meia verdade, o oportunista plebeu tornado líder, mas Zvar era igualmente culpado. Se ele tivesse sido homem de honra e apontar a meia verdade. Se ele tivesse gritado a plenos pulmões que embora o anterior líder tivesse sido ferido por uma flecha inimiga e era aqui que residia a meia verdade, esta jamais perfuraria e se entranharia, causando o máximo de lesões internas como a flecha que o ex-líder carregava. Zvar teve na mão a oportunidade de desfazer a jura do líder e condenar Bradus à morte, mas não o fez. A sua consciência morrera aturdida nesse momento, há vinte anos atrás e desde então Zvar era refém do imperador e só os dois sabiam a verdade.
Na verdade houve uma altura em que Zvar , com remorsos ainda tentou de certa forma colocar em evidência a suspeição do golpe, mas mais uma vez Bradus surpreendera o clã com um improvável pacto de aliança com Utter e as lendas das façanhas do filho do ferreiro voltaram ao de cima, abafando a vontade de Zvar contar a verdade.
-Estamos de acordo nesse ponto?
De súbito o conselheiro foi arrancado dos seus devaneios, esforçando-se por omitir que na verdade ele não o estava a ouvir.
-Obviamente, meu senhor.
-Graças aos nossos batedores reunimos as condições necessárias para afirmar que Ischtfall cairá tão depressa como Borren caiu.
-Isso será ideal. Com esta última vitória o povo se calará
Zvar desprezava a pessoa do imperador, das suas artimanhas constantes, dos seus planos mirabolantes. Odiava os seus modos teatrais, o sorriso irónico com que sempre o abordava e sobretudo odiava o imenso poder que Bradus lhe dava continuamente, pois via nessas promoções apenas o pagamento do seu silêncio.
 Só a sua consciência por vezes o atormentava e quando isso sucedia, passava as noites a escrever a verdade tal como a conhecia em rolos de pergaminho que provavelmente ninguém iria ler .Deveria contudo estar a realizar um outro tipo de obra, uma descrição das grandiosas batalhas e conquistas do seu imperador, em modo de epopeia, talvez com alguns poemas da sua lavra, ou letras para bardos cantarem, mas os Mosteirais que se preocupassem com isso. Que narrassem como bem entendessem, porque só ele sabia a verdade e tudo o que pudesse ser escrito por outrem seria sempre baseado numa grande mentira.
No fundo,Bradus era aquilo que sempre fora, constatou ele mentalmente, olhando de soslaio para o modo atabalhoado com que ele bebia o vinho, um pobre plebeu, nada instruído, com a mania das grandezas, sem qualquer noção de como gerir o reino. Aliás,só os Deuses podiam saber quantas vezes  ele rectificou os planos, os mapas e as decisões.Quantas noites passara em claro a alterar o posicionamento da cavalaria, a corrigir a composição dos batalhões e outros dados técnicos que aprendera através dos manuscritos dos Mosteirais. Tinha sido sem dúvida um trabalho extenuante pelo menos até ao momento em que Maleena começou  a ter alguma influência no imperador e então sim já era ela a criar as linhas mestras das batalhas, embora continuasse a ser o imperador a apresentar os planos aos seus homens:
-Haveis procedido bem, majestade - Parabenizou o conselheiro não estranhando a pequena alteração de última hora aos planos.
-Sem dúvida. Livro-me de dois problemas de uma vez só.
-Dois problemas majestade? - Sondou o ancião, admirado pela postura  do imperador.
-Efectivamente. Não só derroto Ischtfall tornando-me senhor de toda a Arkhan, como entrego de mão beijada o reino à gestão de Brunus e ao seu exército.Sempre prefiro um Orgueniano que um general de Utter, por melhor que ele possa ser.
-Oh, estou a ver majestade! - O conselheiro pareceu surpreendido com a explicação.-Mas seria o seu filho Julius a gerir Ischtfall....
-Esse era o plano, efectivamente...Não, mas eu prefiro ter Julius aqui. Ele ainda é uma criança e ...
-Mas ele tem vinte e um anos senhor!
-E que sabe ele de batalhas? Todos os dias enfiado neste espaço, sempre à volta da mãe...

-Julius apenas precisa de responsabilidade e de treinar as suas capacidades de chefia e bem sabeis meu senhor que o povo o adora! - O rosto do conselheiro exprimia preocupação enquanto servia mais vinho ao seu soberano.
-Precisamente por isso!- Gritou o imperador batendo a mão violentamente no tampo da mesa-  Bem sei que o povo está farto de mim, que  censura esta campanha gloriosa e que ache que é hora de parar...
-Mais uma razão para derrubares Ischtfall com vosso filho ao lado. Creio que esses eram os planos iniciais... 
-Levar o fedelho para a batalha mais importante de Arkhan....Tolice! - Sentenciou o imperador com um timbre de voz de escárnio.
-Sabeis que ele é capaz. Tem tidos os melhores professores...
O imperador atirou com violência o pequeno copo de âmbar para o chão com violência e encarou o rosto enrugado de Zvar:
-Acaso já presenciastes o fedelho a sacar uma única vez da espada?
-Não , meu senhor. - Respondeu Zvar fingindo estar a tentar recordar-se
- Dizei-me, por ventura soubeste de alguma briga em que tenha participado?
O conselheiro não respondeu. e então o imperador ergueu-se já trôpego dos efeitos do vinho:
-Olhai o que digo, Orgutt apenas crescerá enquanto eu for vivo. Infelizmente não acredito que Julius possa sequer imaginar expandir o império para Norte.
-Para Norte senhor? Mas essas são as terras do senhor de Xing o senhor da guerra, vosso aliado!
O rei encarou-o proferindo um quase inaudível murmúrio, antes de adormecer
-Covardes....Rodeado de fedelhos e covardes 
No fundo o conselheiro havia sido uma vez mais surpreendido pelo seu soberano. Gastara tanto tempo a convencer Maleena acerca do pai levar o jovem Julius para batalha...gastara tantos soberanos de ouro a contratar os melhores mercenários para uma emboscada no regresso do imperador e afinal....Como podiam as coisas ficarem sempre tão confusas quando eram processadas pela cabeça de Bradus? 
Enervado por mais uma vez ver os seus planos comprometidos, Zvar abandonou a sala, sem reparar num vulto que se refugiara numa sombra.
Sozinho, encostado à parede e em choque com o que tinha ouvido da boca do seu pai, Julius chorou de raiva pela primeira vez na sua vida.

2 comentários:

  1. "A mentira é veneno de uma cobra, uma víbora, um ser rastejante e imundo, de pele tão fria como a neve no inverno, cuspida por uma língua bifurcada entre falsa modéstia e o desprezo pela honra mascarada de meias verdades. " Soberbo este momento, ilustrativo, poetico e preciso!!
    Mas Zvar sabe...

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    1. Ohhh...Como estava a necessitar da tua visão!!! ( preciso de falar ctgo anyway no face)

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