domingo, 24 de julho de 2016

A Saga de Arkhan - Livro 2 - Ischtfall - Capítulo 6








Castiga-me devagar...
Um açoite por cada sonho idiota...
Quero a minha cota de culpa sentida,
sorvida já fria, sem gosto,
temperada com sal e desgosto,
vazia e remendada.

Inês Dunas
http://librisscriptaest.blogspot.pt/2014/04/o-peso-da-gravidade.html



O SENHOR DA GUERRA



Situada a cerca de quarenta quilómetros da fronteira de Ischtfall com as Terras do Norte, Xanti era a capital do Império do Senhor da Guerra, o homem mais temido quer pelos seus súbditos, quer por toda a Arkhan, que agora observava em silêncio o horizonte, perscrutando o céu em busca da visão de qualquer ave.
-Aguardais notícias? - Proferiu a senhora de idade imaculadamente vestida num comprido vestido de cerimónia.
-Incomoda-me este silêncio! Faz-me lembrar a calmaria antes das grandes chuvadas.
-Orgutt te chamará, verás!
-Braddus está em guerra em Arkhan, - Continuou ele como se não tivesse ouvido, continuando com o olhar fito no horizonte- Por agora creio que com os povos vizinhos, mas temo que isto seja apenas o começo.
-O rei de Orgutt nada fará de tão importante sem a vossa presença. Afinal foi ele que te conduziu ao cargo que ocupas.
-Não! - Gritou o imperador irado, desviando momentaneamente o olhar para a idosa mulher- Quantas vezes tenho de repetir que ele não me colocou em lado nenhum. Os Deuses da Guerra e da Fortuna é que me colocaram aqui.
-Não era isso que queria dizer. Perdoai-me Marruk
-bem sabeis, prezada avó que subi a custo. Liderei os meus conterrâneos, enfrentei o Povo das Terras Geladas e eliminei a invasão.
-Com a preciosa ajuda de Orgutt.
Marruk agitou-se no uniforme negro, sacudindo o manto negro de forma a tornar visível o punho da sua espada, deu dois passos em direcção à sua avó, largando de vez a pequena janela do castelo:
-Braddus ajudou de facto e a experiência do exército de Orgutt foi útil não só para a vitória, como nos ensinamentos aos homens. Mas fui eu que cavalguei à frente dos nossos resistentes homens na carga final. Foi pela minha espada que Drurr foi derrotado e se esta capital hoje existe, a mim o deve.
-Com certeza. Só quis descansar o vosso espírito.
-Espero que ele não cometa a tolice de avançar para Borren.
A pesada senhora ia retorquir algo, mas calou-se com medo que Marruk pudesse adivinhar os seus pensamentos. Procurando uma forma de contornar os seus maiores receios, soltou sem grande crença no que afirmava:
-O monge o diria se fosse esse o caso!
-Gambinus? vale o seu peso em ouro. Boa ideia a vossa de o usar como espião em Orgutt. Braddus jamais suspeitará!
Ao longe ouviu-se o crocitar do corvo e com apreensão, o Senhor da Guerra observou-o a entrar, enquanto colocava a luva e aguardou que ele pousasse para recolher .
A idosa senhora num sobressalto agitado aproximou-se do neto e temeu o pior. Se era um corvo a trazer notícias, elas eram mandadas pelos Smurds, os treinados espiões do Império e não por Orgutt.
Sem perder tempo o Imperador leu e releu a informação, atirou o rolo codificado para o chão e berrou:
-Ultraje, Braddus está louco!
-Que dizeis?- Indagou a avó do imperador a custo, quase sem fala.
-Borren caiu!
-Mas como... Não estavam em Samerti?
-Caiu num par de horas!
-Ischtfall vai ter de entrar em Guerra! Porque Braddus desafiará Leopoldo II?
-Ischtfall não vai entrar em Guerra. A Guerra vai chegar a Ischtfall. Eles dirigem-se para lá.
-Que podem eles querer com Ischtfall?
O imperador colocou a mão sob o punho da espada e proferiu num timbre tão calmo que gelou o coração da idosa mulher:
-Bem sabeis o que querem. Só podem ter descoberto o segredo!
Sem ar, tremendo das pernas a baronesa caiu desamparadamente sem sentidos no chão de pedra, sendo imediatamente socorrida pelas duas aias encarregues de a acompanhar.
Sem saber o que proferir ou o que fazer, o senhor máximo de Xanti, dirigiu-se para a varanda a fim de contemplar a cidade como se precisasse de inspiração
E nessa fim da manhã a cidade apresentava-se aos seus olhos mais bela que nunca,
Xanti nasceu esporádicamente com cerca de trezentas pessoas que gradualmente se instalavam aí, seduzidas pelo manto verde, pelos riachos e pela abundância de árvores que lhe permitiriam a construção de casas confortáveis, pontes e até vedação contra animais selvagens. Há medida que a povoação foi crescendo em número de habitantes, foram criadas regras e nomeado um corpo de guarda responsável pela observância e manutenção dessas mesmas regras e naturalmente as localidades vizinhas passaram a ver Xanti como um modelo e exemplo a seguir
Assim, salvo alguns episódios de focos de doenças, a povoação foi ganhando corpo , a actividade comercial começou a ganhar frutos, com uma afluência constante de mercadores das localidades vizinhas e não tardou muito até que a localidade fosse igualmente ponto de passagem e paragem de todos os mercadores de Arkhan.
Até se tornar o centro de um Império, criado, conquistado e chefiado por Atunis Marruk que aquando da segunda invasão dos Povos das Terras Geladas, auxiliado por um grande contingente de Orgutt, comandado pelo próprio soberano de Orgutt, não só saiu vitorioso, como estendeu a sua influência e política militar a todas as localidades a Norte, lançando as bases do que é hoje o Império do Norte fazendo fronteira a Sul com Arkhan e a Norte, muito a norte com o Povo das Terras geladas sendo hoje praticamente inacessível a qualquer opositor.
Na verdade há uma Xanti antes do Senhor da Guerra, a da povoação com medo e assustada, sem alianças e sem rotas comerciais fixas e a da Capital do Império do Senhor da Guerra, respeitada e temida.
Marruk  nascido e criado ali era uma criança inteligente, filho do melhor ferreiro da povoação que o deixaria orfão aos treze anos vítima da praga vermelha, tendo o jovem passado para a supervisão da avó paterna, uma mulher forte de queixo duplo, desconhecedora do ofício de ferreiro, mas tida pelos outros habitantes como milagrosa, dada a extraordinária capacidade de curar algumas enfermidades com o recurso a plantas e oração.
E ele usou e abusou desses conhecimentos em farmacologia transmitidos pela avó, para poder brilhar junto dos seus. Até que percebeu que poderia usar esses conhecimentos para ataque e defesa fabricando artesanalmente pós de plantas que davam comichão, outros que cegavam temporariamente e outros ainda que administrados na quantidade certa provocavam alucinações e paralisação dos membros. Fazia-o secretamente, ás escondidas do pai e da avó mas depressa passara a ser respeitado e temido pelas crianças da sua idade. A avó era o seu maior trunfo e ele aproveitava todos os ensinamentos que dela pudesse extrair, nunca compreendendo como a mulher pudesse saber tanto sobre tanta coisa.
E esse foi o grande segredo que Saydanaha  partilhou na altura certa com o neto. Ela,tal como o filho eram naturais de Ischtfall,tendo os dois vivido na Tribo da Montanha aquando da exploração mineira de Ischtfall na Grande Montanha. Nunca percebera porque mentira desde que aí chegara ao afirmar ser de Borren, mas algo no seu íntimo lhe dizia que deveria ocultar a sua naturalidade e ainda bem que o fez. Pois após a morte do pai e não obstante a avó tudo ter feito para assegurar o mínimo de conforto ao jo:vem este percebeu qual o seu destino, quando encontrou escondido numa velha arca  a espada e armadura do pai, forçando a avó a contar aquele passado desconhecido do progenitor. E tinha sido tão difícil a Saydanaha explicar que na verdade o jovem não era filho do ferreiro, era apenas "adoptado", dado que depois de vaguearem por Arkhan à procura de um sítio onde recomeçar uma nova vida sem os rigores do inverno na Montanha e sem o isolamento de tudo, os dois pararam em Xanti e de lá não mais saíram, tendo o homem que havia sido guerreiro na Tribo, se  apaixonado por Miriah também ela falecida pela praga.
De testa suada, o imperador recordava-se agora, enquanto digeria a notícia recebida, o momento em que escolheu o seu caminho.
Recordava o ar de desespero da sua avó, quando ela lhe contou a verdade sobre seu pretenso pai, por sinal a mesma expressão que ela agora usara aquando do recebimento da notícia. Recordou-a sentada, sem saber o que dizer, com um olhar aparvalhado e assustado e recordava perfeitamente o que lhe respondera, nunca percebendo ao certo porque "gravara" mentalmente aquela cena e o modo como lhe respondeu:
-Eu sei avó. Sempre soube!
-Como o sabias?
-Não sei ao certo como, mas na convivência com o pai via que não tínhamos os mesmos gostos.
A maturidade do jovem desarmou-a:
-Sempre foste especial....
-Agora sei qual o meu caminho....Mas tenho medo, avó!
-E qual é o teu caminho? - Disse ela mirando o jovem com interesse.
-Farei parte da guarda de Xanti.
-Mas nunca pegaste numa espada.
-Sim, mas vou aprender com os melhores! -Afirmou o jovem com um olhar confiante.
A forte mulher ergueu-se aproximando-se devagar do neto, envolvendo-o num abraço:
-É realmente isso que queres?
-É!
-Então há mais uma coisa que precisas de saber: Essa espada que com tanta relutância seguras na mão era do teu padrasto, como já deves ter calculado e no entanto não é uma espada normal.
-Não é?
-Tira-a para fora e observa-a.
A ordem era mais fácil de dar do que obedecer e só a custo as mãos do petiz conseguiram desembainhar a espada, retirando-a completamente da sua bainha, e em silencio observou os pormenores rudimentares do guarda mão, como se tivessem sido martelados por pedras e não por martelos numa bigorna, depois atentamente reparou na beleza da lamina, de um material que ele não conhecia. Toda a lamina era negra, como se tivesse uma segunda bainha e no entanto o gume e a saliência central reluziam numa mestria e perfeição difícil de o fazer.
-É negra! - Exclamou por fim.
-Sim, é. Não há material igual em toda a Arkhan. Só as Montanhas o conhecem e jamais dirás a estranhos a sua origem. Combinado?
-Sim avó.
-Espero que percebas que essa espada é praticamente indestrutível. Se esse material caísse nas mãos erradas, o usariam para armaduras e espadas e lanças e...seriam invenciveis.
Com uma certa nostalgia no olhar, o imperador recordou a sua questão pertinente, lançada dias depois, enquanto jantavam:
-Avó, se aquilo que sabemos é realmente indistrutivel e se foi encontrado nas minas da Montanha, propriedade de Isctfall, porque o rei não o usa?
A mulher sorriu, num sorriso aberto, pela perspicácia do neto e proferiu muito baixinho:
-Porque nós na Montanha nunca dissemos a Leopoldo I o que encontramos. Como te disse é um segredo da Tribo. 
-Então a Tribo podia ser invencível e derrotar...
-A tribo não entra em Guerra. A Deusa Matuka, senhora da bondade e da natureza não nos deixa tirar vidas.
E que poderia um adolescente proferir naquela altura perante tal afirmação? Marruk sorriu abertamente ao se recordar:
-Avó essa Deusa é burra! Todos sabem que se não formos fortes, outros serão e nos conquistarão!
-Não faleis assim de Matuka. Não espero que entendas o nosso Povo, mas atentai que até hoje nunca houve uma batalha ou guerra, ou qualquer atrocidade entre o nosso povo. 
Como ela estava errada, concluiu o imperador, volvidos vinte anos, e como ele estava certo. Não fosse a audácia e a sua espada especial e hoje Xanti não existiria. Seria apenas mais um ponto no mapa do Império do Povo das Terras Geladas. Agora Braddus caminha para Ischtfall e se as suas suspeitas estiverem certas, antes de chegar a Ischtfall, Braddus passará pela Montanha. É o metal que querem. E depois de o terem e depois de derrotarem Ischtfall e depois de unirem toda a Arkhan numa só, o exército de Orgutt caminhará reforçado e equipado pelo vil metal, em direcção a Xanti.
Marruk desembainhou a espada pensativamente. Algo teria de ser feito mas as duas opções que lhe restavam eram no mínimo intrigantes: Ou se apresentaria com todo o exército em Orgutt, aproveitando a aliança estabelecida para se colocar já no interior do Império do futuro inimigo, tentando saber se de facto o segredo da Montanha tinha sido descoberto, ou marcharia até Ischtfall, baralhando Braddus e provocando um ponto de ruptura que quebre a aliança com Orgutt.
O imperador vestido de negro suspirou fundo talvez numa tentativa de eliminar um último pensamento. Havia uma terceira opção, a pior delas todas, a única que não queria de todo tomar, mas que poderia ser o seu derradeiro plano: Solicitar ajuda em forma de aliança militar com os Povos das Terras Geladas.
Marruk voltou à sala do Trono, olhando nervosamente para avó que em choro lhe solicitou:
-Salvai Ischtfall e assim salvais o meu Povo. Só vós podeis parar Braddus! Fazei isso em memória de vosso padrasto que vos amou incondicionalmente.
O líder olhou a chorosa senhora, chamou um criado e num tom de voz frio e cortante ordenou:
-Fazei tocar o sino de Guerra! Que os generais se apresentem e preparai o meu cavalo. 
A avó olhou-o inquieta:
-Dou-vos a minha palavra, Ischtfall não cairá.
-Por Matuka, que a vossa palavra fique gravada em rocha!
-Não posso é garantir o mesmo sobre o vosso povo.
O som dos passos do imperador ecoaram por toda a divisão deixando uma senhora de idade de novo à beira de perder os sentidos,






1 comentário:

  1. E vim passear ao teu universo e que bem que soube!! Será que Marruk fará aliança certa? Será que o povo da Montanha continuará a honrar os ensinamentos da sua deusa ou perceberá, infelizmente, que às vezes a única forma de mantermos a Paz é fazendo a guerra?
    " A melhor forma do mal triunfar é se os homens de bem nada fizerem..."
    Adoro passear no teu universo, faz-me sempre pensar!
    Beijinho em ti!

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