quinta-feira, 14 de julho de 2016

Poderosa Perversão - Capítulo 5



chora porque riste até ficares sem ar,
morre mas esgota tudo o que há de mais profundo
nessa réstia de vida que respiras ainda.
A vida não são só orgãos que funcionam,
também são o Maestro que lhes ensina a musica e conduz a arte

Inês Dunas : 00:03
http://librisscriptaest.blogspot.pt/2016/06/0003.html



E NO ENTANTO ELAS CRESCEM!



Com um ar desesperado, ela atirou o telemóvel para o interior da bolsa, agarrou nas chaves do seu Corsa já velhinho e assim que chegou à porta da rua,  retrocedeu uma vez mais, subiu as escadas e voltou a refugiar-se em casa, sentando-se pesadamente no sofá de tecido gasto sem fazer a mais pálida ideia do que poderia fazer.
Com quarenta e três anos, viúva e melancolicamente vazia de pensamentos, agarrava-se à ilusão de que de algum canto da casa surgisse uma voz do Além que lhe dissesse exactamente o que teria de fazer , pois neste preciso momento ela não fazia a mais pálida ideia de como agir.
Nem sempre tinha sido assim pois houvera uma altura, há já alguns anos atrás que Manuela Ferraz tinha um projecto de vida, um sonho de futuro que o destino ou a má sorte não lhe permitiu. 
É verdade que cumprira o sonho de um casamento recheado de partilha, convívio e cumplicidade, como era igualmente verdade que satisfizera o seu enorme desejo de ser mãe e hoje, uma vez mais, por qualquer ironia da vida, levava outra chapada de desespero na única viga mestre que ainda se mantinha em pé no seu alicerce mental. 
Durante treze anos a única filha tinha sido o seu projecto de vida, dedicando-se quase sempre em detrimento de carreira ou possibilidade de promoção e novo emprego aliciante. Desde que a tinha sido mãe, que algo dentro dela igualmente nasceu. Talvez nem tivesse nascido, talvez esse algo já existisse no seu íntimo e aguardasse pacientemente a altura de ser útil, amadurecendo e se aperfeiçoando. Na verdade, pensava ela enquanto escondia as mãos debaixo das pernas, escondendo de alguém imaginário os seus tiques nervosos, ninguém nos ensina a ser mães e depois de colocarmos um Ser no mundo, não só passamos a ser infinitamente responsáveis por eles, como acima de tudo teremos de o saber decifrar e amar. Ser mãe, na opinião dela era algo de incrivelmente bom e verdadeiro, de majestoso até. Tinha-lhe sido dado por qualquer entidade cósmica, cumprindo o seu destino nesta vida demasiado dura e conhecera então a felicidade suprema de não só ter a oportunidade de transmitir ao seu rebento tudo o que de bom tivesse para partilhar, como possuíra igualmente a ancora de um marido e pai sempre presente, sempre atento, sempre necessário, sempre com um bom humor e capaz de transformar qualquer drama, numa enorme nuvem de pós que facilmente se dissipava.
para além disso ele tinha sempre um plano, um conselho e um lado prático que a guiava e a serenava, mas agora ele tinha desaparecido, levado pela mão de um anjo, para um reino cósmico sem dor ou maldade, deixando-a só com uma adolescente de génio complicado e no fundo, ingrata como são a maior parte das adolescentes.
Sara já possuía desde muito cedo, uma rebeldia peculiar, ainda mais acentuada do que ouvira colegas do trabalho contar sobre as filhas e filhos deles. Sempre tinha sido uma criança de trato difícil, muito senhora do seu nariz, difícil de aturar.
Não raras vezes as forças faltavam a Manuela, resultado sobretudo das crises de choro de uma mente em frangalhos, das noites mal dormidas, das palavras que por vezes saíam da boca da filha com o balas " Mãe, odeio-te!". Mas que depois passavam, morrendo na solicitude de um beijo ou abraço.
No fundo, pensou ela mordendo o filtro de um Camel ainda não acesso, essa talvez tivesse sido a grande explicação para ter falhado como mãe!
Nunca resistira a comparar as fases de crescimento da filha com o que as colegas do trabalho contavam sobre os deles, ansiando sempre por ouvir novos desenvolvimentos e correr para casa para submeter a filha, como se  de um cobaia humana se tratasse, às novas experiências e então comparar o resultado.
Não o fazia contudo por pura vaidade ou por uma questão de super protecção, ainda que tal soasse aos ouvidos do seu falecido marido como obsessão. Fazia-o pois desde o início que a pediatra escolhida para ser o suporte dos pais no desenvolvimento da criança lhes fizera ver que de certa forma a criança que com tanto cuidado e devoção tinham criado, tinha laivos de narcisismo e uma queda acentuada para uma rebeldia mais aguda que o que seria de esperar e pelo sim pelo não, seria melhor ter acompanhamento de um psicólogo. 
Na altura Manuela sorriu de desdém ante a perspectiva de em tão tenra idade submeter a criança à tortura de um psicólogo e ainda mais tarde na passagem para a adolescência  continuou convicta de ter tomado a melhor decisão, mas os estranhos comportamentos da filha após a morte do pai  foram exponencialmente surgindo, numa sucessão de momentos capazes de dilacerar a mente mais calma e zen do mundo.
Sara tinha para além de um génio irascível, a fantástica capacidade de provocar, de desafiar os dogmas e convicções de quem quer que seja. 
Os exemplos sucediam-se em catadupa, relembrava ela brincando pensativamente com o cinzeiro. Na catequese, ainda criança ousara desenhar Cristo na cruz nu, pois na mente dela nenhuma mulher ousaria tocar num corpo com sangue e toda a gente, na opinião dela evidentemente, sabe que são as mulheres a vestirem os homens. Pelos seus catorze anos, depois de Manuela lhe ter pregado um extenso sermão sobre a necessidade de ser boa estudante, ter boas notas, seguir um curso superior, a miúda acabou diligentemente o jantar, cruzando os talheres sobre o prato  enquanto parecia ouvir o que a progenitora dizia e de repente a pergunta à queima-roupa:
-Mãe, tu usas quantos dedos para te masturbares?
-Mas por Deus, que é isso? Isso não são conversas que se tenha assim....caramba, comporta-te - Explodiu ela
-Mas é uma dúvida como qualquer outra...
-Cala-te, ou levas na cara.
-Não te faltei ao respeito...
-Faltas-te sim! Que raio de conversa...onde ouviste isso?
-Não ouvi em lado nenhum. - Respondeu ela autoritária.
-Isso cheira-me a ordinarices dos teus amigos...
-Eu não tenho amigos.
-Então onde aprendeste isso?
-Não foi contigo. Nunca me ensinas nada.
Na memória de Manuela, o que mais a impressionava era o facto da calma dela. Sara falava de qualquer coisa, sobre qualquer assunto, muitas das vezes a saber que ia provocar, sempre numa calma terrível, sempre senhora de si, sempre sem levantar a voz ou se enervar que regra geral acabava com a outra pessoa nervosa, irada e capaz de fazer coisas impensáveis se estivesse calma.
-Deixemos esse assunto. Vamos ignorar a tua questão e saborear a sobremesa.
-Presumo então que não o fazes.
-Sara, isso não interessa. Isso é do foro privado e  íntimo de cada um e não tens o direito de fazer essas perguntas, entendido?
Ela não se lembrava se Sara respondera ou se algo mais tinha sido falado, aquilo que se recordara é que horas depois, alertada por barulhos se levantara a meio da noite, reparara na porta do quarto da filha estranhamente aberta, quando por norma ela fechava à chave por dentro e vira-a nua de pernas abertas diante do espelho, gemendo e contorcendo-se de prazer e sorria para a figura maternal reflectida no espelho, como se tivesse montado aquele pequeno show para ela...E Manuela passara a noite acordada, com duas aspirinas e uma insónia fenomenal a pensar onde tinha errado.
Agora recebera o telefonema da escola, onde lhe transmitiram que Sara estava no Hospital, agredida por um professor e de certa forma ela sabia que a filha tinha uma vez mais estourado a paciência de alguém. 
Decidida, acendeu um novo Camel, abriu a porta da rua e desta vez não mudou de ideias.










1 comentário:

  1. Cada vez que me queixar de dias dificeis da maternidade venho aqui ler este capitulo... LOL
    Mas a verdade é que a Sara é uma personagem misteriosa, complicada e à sua (tua) maneira, apaixonante!

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