quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A Vã Glória de Te Amar - Capitulo 1 - parte 1


A mulher gorda, conduzia a sujeita magra, pelas escadas de madeira, como uma carcereira avança pelo corredor das grades. Autoritária!
Enquanto avançava, ía opinando os mais diversos pareceres:
-É como lhe digo, não encontra outro apartamento tão catita.
-Acredito. Mas o preço…
-O preço a gente combina depois. O que importa é que goste. Você vai gostar, não vai?
-Não sei… bem… sim. Ouça mas é só para mim, não precisa de ser um grande apartamento.
-Ora, uma pessoa tem necessidades. Não tem animais, pois não?
-Animais?
-Não suporto animais. Ainda no outro dia, um senhor quis alugar e como tinha um cão…
-Ah não. Não tenho animais.
-Óptimo.
Num movimento brusco, a pesada mulher rodou a chave a abriu a porta do 2 A, perante o olhar atónito e desesperado da jovem loira:
-Que lhe disse eu? Uma pechincha!
O suposto T1, mais não era que um cubículo apertado, com uma janela minúscula, a fazer lembrar a vigia de um navio, e uma cama mal amanhada ao canto.
-Claro que precisa de uma pintura, mas isso ficará ao seu cuidado.
-Bem, é mais pequeno do que eu esperava.
-Óptimo, é como você dizia. Queria uma coisa pequenina, correcto?
-Bem, sim. Mas a cama…
-Oh uma delícia. Em ferro forjado, com um colchão semi novo. Vai dormir como uma pena, garanto-lhe.
-Acredito, mas não sei.
-Ora, não seja tímida. É a sua cara.
A jovem esboçou um esgar de desespero. Se aquilo era a sua cara, estava urgentemente a necessitar de cuidados estéticos.Contudo Marta havia deixado para trás um marido possesivo e uma sogra autoritária e agora, tudo o que precisava era de sossego. O montante que levantara da sua conta secreta, daria o suficiente para se aguentar três meses sem arranjar trabalho, mas depois teria que improvisar.
-Ok, eu fico com ele.
-Eu sei que sim, coisinha fofa. São cento e cinquenta euros por mês.
-Mas ontem tinha-me falado em cem euros.
-Correcto. Mas isso era sem a cama.
Marta acenou a cabeça e antes que o preço subisse mais, adiantou o dinheiro e enquanto via a mulher gorda sair, segredou ” ainda bem que não me cobrou a janela”!
Com apenas uma pequena mala, ( que ela arrumara a pressa, antes de fugir de casa), a jovem caiu pesadamente na cama.
Haviam passado doze horas sem conseguir dormir e apesar do seu estômago a alertar para a fome, o cansaço instalava-se e entre lágrimas de desespero, adormeceu.
Apesar de cansada e “triturada” pelos acontecimentos dos últimos dias,Marta não teve direito a sonhar. Uma chuva forte e violenta, despertou-a e com gritos de histeria, viu as longas fileiras de água escorrerem pela parede, em rios minúsculos de ávida velocidade, até formarem mini lagoas no soalho.
Numa luta heróica, munindo-se dos lençois da cama, praguejava contra a senhora gorda, contra a chuva, contra a água, contra ela.
Num desespero e numa impotência gritante, encostou-se á cama e desistiu de impedir a água de entrar.
Abandonara Vila Real, fugira para o Porto e agora era ocupante de um “submarino”, num segundo andar, quase águas furtadas. Bonito!
Ela que era médica de prestígio, era agora foragida dos seus demónios e dos seus receios. Sabia contudo que a polícia não a procuraria. Era maior de idade e mesmo que o marido alertasse a polícia, eles não a poderiam obrigar a regressar. O seu maior medo, era se o marido a procurasse.
Estava tão farta de apanhar, de ser insultada.
Mas agora não tinha medo. Nunca a encontrariam no Porto e mesmo que algum tempo depois soubessem dela, ela já iria ser outra mulher. Assim o esperava.
Com o abrandar da chuva ela recuperou um pouco a sua boa disposição e ganhando coragem, passou o apartamento a pente fino, à procura de lençois ou algo que pudesse ser usado como tal. Não iria enfrentar a mulher gorda agora. Esperaria que se restabelecesse e nessa altura a confrontaria.
De pés descalços, saltitava pelo quarto, vasculhando o único armário que ele possuía e para seu desgosto, à excepção de uma almofada, estava vazio.
Resignada, abriu a mala, retirou um caderno A4 do seu interior e uma caneta e começou a elaborar a lista:
-Lençois, candeeiro, roupa, Pijama, fita isoladora para calaftar a janela…
Abanou a cabeça e rasgou a folha, destruindo-a e recomeçou a lista, desta vez dividindo-a por categorias.
O fim da tarde já caía sem chuva quando ela acabou a tarefa e esforçando-se por ignorar a fome, voltou a deitar-se e treinar mentalmente o dia seguinte, o primeiro dia da sua nova vida.
Agora que pensava nisso, teve um calafrio. Ao fim de sete anos de casada e de em solteira, ter partilhado sempre a casa com os pais e duas irmãs, esta era a primeira vez que realmente iria ficar sozinha. Completamente sozinha.
Sozinha, num cubículo inundado pela chuva que invadia as arestas irregulares da janela. Sozinha, sem um radio ou Tv,sem noticias de ninguém, sem telemóvel ou alguém conhecido a quem pedir dois minutos de atenção.
Sozinha!
Veio-lhe á cabeça a expressão, “cada um tem o que merece” e de riso descontrolado, sentou-se na cama e chorou.
Foi então que subitamente no contraste da curta luz de um candeeiro público que lhe invadia tenuemente o quarto, ela reparou num “alto” irregular do chão do quarto. Podia ser mais um defeito do quarto, um buraco, ou na pior das hipóteses, um buraco de rato, tapado pela alcatifa, ( sim, ela estava cada vez menos optimista).
Procurando uma arma de defesa, optou pela caneta de bico redondo e pegando nela como se fosse um punhal, ajoelhou-se e sem respirar afastou a alcatifa.
Miraculosamente nenhum rato saltou, ou surgiu algum bicho ameaçador. Era apenas um alto formado por alguns tacos de madeira, levemente erguidos, como se estivessem a ocultar algo. Usando a caneta como alavanca , levantou facilmente os tacos em falso e sorriu de surpresa.
Um objecto rectangular de pequenas dimensões, embrulhado num papel verde, aparentando o formato de um livro de bolso, jazia inerte aos seus pés.
Delicadamente pegou nele e com todo o cuidado que os seus dedos de cirurgiã permitiam, soltou o cordão que atava o livro, desembaraçou-se do papel verde e então, sentada na cama ,abriu o pequeno livro manuscrito.
Era uma espécie de diário, contudo bem organizado e separado por capítulos.
Quase sem se dar conta, tremia de emoção, era talvez a vontade de ler sobre alguém, ou matar o ócio do tempo, que a fazia continuar.
Virou a página e leu o título, ” A vã glória de te amar”. Sorriu perante a proximidade de revelações bombásticas e deliciada, esquecida da fome e do cansaço, deitou-se a ler.

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