quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A Vã Glória de Te Amar - Capitulo 1 - parte 2



Para lá desta janela vejo o mundo a correr, os dias a nascerem e as horas a morrerem. Não sei mais contar o tempo, saborear os minutos ou aplaudir as horas incessantes de hábitos mundanos.
Por falar em tempo, não sei quanto dele ainda me resta! Mas já não tenho medo, já não sinto pena.
Perdi tudo o que tinha, enquanto ía avançando tempo fora. Perdi tudo o que me era querido, ao longo destes tempos.
Hoje sou cadáver vivo de uma vida não aproveitada, sou moribundo de sonhos desfeitos e destinos traiçoeiros.
Sinto a agulha do soro a magoar-me, receio olhar para o meu braço, para mim. Sou espelho baço do meu passado e anúncio de uma morte em sofrimento.
Como definir melhor a minha situação?
Imaginem estarem acorrentados, numa cama, com a cabeça numa posição apenas. Agora imaginem, que a única coisa que vêm é uma pequena janela, e para lá desta uma copa de uma árvore sem folhas, ( será Outono, ou tal como eu, ela também morre devagar?).Para além disto, imaginem os sons que me chegam. Gemidos, vozes entrecortadas e sons díspares, próprios de uma cama de hospital.
Percebem agora toda a minha ansiedade de divagar e sobretudo de deixar de respirar?
Não compreendam mal. Eu não sou normal! Fui fruto vivido e raramente apetecido, hoje sou calda de compota de ilusões vividas.
Perdão. Na pressa de vos saudar, esqueci-me de me apresentar. O meu nome é Cláudio Vega, curador da biblioteca municipal cá do burgo. Solteiro, cinquenta anos feitos em Março, internado num hospital com qualquer problema com o coração e sei lá que mais. Em suma, a morrer!
Ignoro porque razão vocês estão na minha mente. Ignoro igualmente o interesse que eu vos possa merecer, mas a vossa companhia sempre dá para me entreter.
Ouço passos, ela lá vem, uma vez mais, evitar que eu morra repentinamente. Pobre enfermeira. Não é incrível o esforço que fazem para não me deixar morrer? Se eu quisesse viver, provavelmente morreria logo de seguida.Porque não morro?
-Ora viva senhor Cláudio. Hoje até estamos com umas cores agradáveis.
-Ainda não morri?
-Lamento. mas ainda vai continuar por aqui!
-Enfermeira, desligue a máquina.
-Tolice. Está quase na hora das visitas. Anime-se homem! – Atirou a sorridente senhora.
Hora das visitas. Seria bom se tivesse alguma. Como já referi, perdi tudo o que tinha. A única visita que eu irei ter é a do padre, da extrema unção. Curiosamente, nunca fui grande católico, mas dizem que é no fim da vida que nos ” agarramos” à fé. Pois eu já não a tenho. Talvez deixe de respirar de seguida.
-Prontinho Sr, Cláudio, já lavadinho e devidamente arranjado. Vai partir corações.
-Ah mulher, deixe-me em paz. Deixe-me morrer com dignidade.
Que disse ela?” vai partir corações!”. Como pode ela acreditar nisso?
Deitado imóvel nesta cama, escrevo esta forma de diário. O meu diário. Melhor, o diário dela, da Glória, da divina Glória. A única mulher por quem vale a pena morrer.
Escrevo cercado de dores e fraco de corpo, mas lúcido de mente e de espírito. Este é o meu legado, a minha forma de despedida….Até qualquer dia!.
Era uma vez…Sim, podia começar assim. pois de facto existiu uma vez, repetida na serenata sucessão de outras vezes, tão contemplativas e intensas. Ah Glória!
Mas começando,houve um tempo que foi assim, que eu era feliz, se tiverem algum tempo conto-vos sobre a Glória. Bem, mesmo que não tenham, conto-vos na mesma. Afinal posso morrer a qualquer instante.
Recuarei trinta anos atrás, até ao verão de 1980. Outros tempos, grandes vitórias e a minha ” Glória”.
Dois meses depois de chegar ao Porto, tinha conseguido o meu primeiro emprego a sério, ( com direito a segurança social, 13º mês e subsidio de férias), como jornalista no Diário do Porto, ali para os lados dos Caldeireiros. Recebia já alguma coisa de jeito e deixara a minha terra natal, para lá do Marão, a bela e linda cidade de Chaves.
Tudo era diferente e atraente, mesmo para um homem com trinta anos sem filhos e pouca vida amorosa., disposto a relançar a vida profissional e a abraças as grandes diferenças das duas cidades…”

Um pesado som de batida na porta, fez a jovem parar a leitura e o seu coração quase parar. Quem poderia ser?
Ela não esperava visitas. Ninguém sabia onde ela estava.
Em pânico, Marta guardou apressadamente o caderno que encontrara e do qual já lera a entrada e evitou mexer–se muito mais. Quem quer que fosse, não a veria. Ela não iria abrir a porta.
Principiara a noite e sem candeeiro de suporte, sem luz natural, não poderia continuar a leitura, pelo que permaneceu estática e calada, atenta ao ruído de passos no exterior.

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