quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A Vã Glória de Te Amar - Capitulo 2


O barulho instalou-se sem avisar, em pesados e secos murros na porta. Encolhida em posição fetal, Marta Reis, acordava aos poucos de um sono mal dormido.
Desde que se mudara para o Porto, aprendera a comer pouco, muito pouco e a dormir muito, muito mesmo.
Descobria aos poucos que começava a ter medo de sair, de lutar pela vida, de se reerguer. Recomeçar é sempre tão difícil, pois já sabemos no nosso íntimo, que inevitávelmente os problemas vão surgir e a felicidade a qualquer momento, volta a ruir.
Claro que ela fazia questão de arranjar novo emprego, de abandonar este desassosego em sossego fictício, mas para isso era preciso força de vontade ou no mínimo uma mão amiga. O problema, diria Freud, talvez estivesse aí. Como poderia ela criar novos hábitos, se vivia isolada, no pequeno quarto alugado, tendo como companhia um diário de um estranho.
Tivera a ideia, no dia anterior, de escrever um diário,mas…que poderia ela dizer? Se as palavras que lhe gabitavam no espírito não eram dela, mas de um Vega?
O estremecer da porta, sob a ira fuzilante de quem batia, assustou-a e apertando os cobertores, como se fossem escudos de protecção, inquiriu:
-Sim. Quem é?
-Sabe muito bem quem é! Hoje é dia de pagamento.
-Pagamento?
-Do quarto.
Sacudindo o cabelo com a ponta dos dedos, como que tentanto afastar o sono, ela tentava coordenar as ideias:
-Mas eu paguei adiantado!
-O primeiro e o ultimo mês. Vai embora hoje?
-Hoje? Não, claro que não!
-Então venho receber este segundo mês!
Um esgar de revolta estalou-lhe nos lábios e rápidamente saiu da cama, procurando com a ponta dos dedos dos pés nus, os chinelos.
-Muito bem. Só um momento que já abro.
Marta viera para esta nova aventura preparada. Trouxera algum dinheiro de reserva, mas a verdade é que como sempre acontece à formiga que guarda e não procura, a reserva estava a sofrer um relativo desgaste.
Por outro lado, morria de medo, que aquela mulher forte visse onde ela guardava as suas economias. Era bem capaz de a assaltar.
Passando com cuidado a mão sob o guarda vestidos, apalpou o saco de plástico e tirou algumas notas azuis de vinte Euros e metendo-as apressadamente no bolso do roupão rosa, recolocou o saco no sítio inicial e abriu a porta.
Como uma inspectora sanitária, a pesada mulher entrou vagarosamente, olhando e fotografando, com os pequenos olhos redondos, tudo o que podia.
De braços cruzados atrás das costas e queixo erguido, inquiriu:
-Julguei que estivesse acompanhada?
-Por quem?
-Uma rapariga jovem nesta cidade, dificilmente passa a noite sozinha.
-Eu durmo muito melhor sozinha.
A pesada mulher, circulou no pequeno espaço, como procurando provas de crime e pacientemente estendeu a mão. Sem lhe dar muita importância, Marta estendeu-lhe as notas e resignada ficou a vê-la contar o dinheiro:
-Sabe, não me tenho aprecebido que costuma sair.
-Na verdade não tenho saído.
-Não trabalha?
-De momento ando à procura!
-Bom menina…
-Marta.
-Isso, aqui na terra, procurasse trabalho lá fora ou no jornal. Não costumam enviar os possíveis patrões aos quartos convidar!
-Oh que pena, logo hoje que estava a pensar vestir o meu melhor traje de gala.- Marta arrependeu-se logo da piada.
De olhar expectante a pesada senhora, tentou descobrir a ironia da frase e encolhendo os ombros, avisou:
-Sabe, eu sou muito zelosa com o pagamento, Não perdoou! Nunca mandriei na vida, sempre fui mulher de trabalho e não aceito desculpas para o não pagamento.
-Comigo, não precisa de se preocupar.
Etelvina, a pesada senhora não pareceu muito convencida e na verdade esta nova inquilina, deixava-a nervosa. Via-se que ela era diferente das “meninas” que apenas vinham para trabalhar à noite, nas esquinas das sombrias ruas do Porto. Esta fulana, pensou, tinha pinta, tinha estilo. Mas o que ela não compreendia, era aquela atitude dela em ficar presa num quarto.
Os pesados sapatos rasos preparavam-se para a conduzir para o exterior do quarto, quando Marta, não resistindo á tentação, inquiriu:
-Dona Etelvina?
-Sim.
-Quem habitava aqui antes de mim?
-Oh, muita gente. Esse é o quarto mais rentável da casa. Eu disse-lhe que era uma pechincha!
-Pois disse. Mas creio ter havido um homem, um tal de Vega…
-Vega?
-Exacto. Claro que posso estar confundida.- Rectificou rápidamente.
-Mas porquê? A menina encontrou algo? – Os olhos dela fecharam-se ligeiramente, voltando a assumir o ar de inspectora.
-Não. Mas havia um papel com esse nome. Só isso.
-Um papel?
-Sim, escrito.
-Um envelope?
-Não. Um papel.
-Bom, que eu saiba, nunca morou aí um homem.
A expressão facial que a jovem assumiu, denunciou-a e sem poder acrescentar alo, apressou-se a fechar a porta.
Porque falara ela num envelope? Porque afirmava que Vega não havia morado ali, se ela tinha encontrado um diário escondido?
Sentando-se no chão do quarto, perto de onde havia encontrado o diário, atirou uma mão ao bolso do casaco, pegando no maço de cigarros que comprara, acendeu um. Sem o saber , ou sem o terer querido evitar, ela recomeçara a fumar. Sentia que aos poucos abandonava a sua crença de médica e tentara se afastar de quem ela havia sido, até há poucos meses atrás.
Decidida, ajoelhou-se e forçando os tacos de madeira do soalho, retirou-os com jeitinho e estendeu a mão, para o local onde o diário havia permanecido esquecido, até ela o encontrar e procurou um envelope.

No fundo das escadas de madeira, a forte mulher procurava o telefone, por entre as páginas de jornal atabalhoadamente dobradas e de mão esquerda na anca, digitou o número pretendido sem desviar os olhos da escadaria:
-Filomena?
-Sim.
-Olha querida, eu hoje tenho de passar por aí. Tenho de te ver.
-Está bem, mas passa-se algo?
-Não. Talvez não seja nada, mas preciso mesmo de estar contigo.
-Já lá vão uns tempos…
-É verdade querida, mas que queres? Esta tua pobre irmã, não tem descanso.
-Fico à tua espera.
-Até logo.
Desligou com força a chamada, deixando cair o telefone em cima da mesa e encolhendo os ombros, sussurrou:
-Diabos me levem, se aquela criatura descobriu o envelope!

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