quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A Vã Glória de Te Amar - Capitulo 4




A rua de Santa Catarina acolhia os inumeros turistas que a vagueavam, em busca de recordações exóticas ou quando muito fotografias pitorescas.
O contraste era constrangedor. Entre uma cidade em ebulição, em que os turistas viam as montras e compravam bastante, com as caixas de cartão amassadas, encolhidas a um canto, lar dos sem abrigo, que alheados á excitação dos turistas apenas procuravam um pouco de paz e alguns trocos para uma malga de sopa, ou um copo de vinho, ou alguma agulha incerta.
Marta Reis caminhava serena e tranquila, em direcção á rua Passos Manuel, decidida a dar uma volta na sua vida.
Quando passara por ali, havia dois dias reparara num letreiro de precisa-se funcionária e se na altura não a moveu a atirar-se à aventura, hoje ela estava disposta a ir á guerra.
Os dias são como pó. Pequenas lembranças no imaginário de alguém, se não os sabe aproveitar.
Ela estava farta de pó, farta de ser secundada em tudo. Farta de navegar ao sabor da corrente. Vega dera-lhe o espírito de luta e subitamente se aperecebera que sempre fora uma vítima. E tal só sucedia porque em momento algum, ela conseguiu dizer Basta!.
Passado todo este tempo, desde que deixara a sua vida anterior e a frio, agora que a poeira do tempo pousou, ela acreditava piamente que deveria ter sido ela a dizer ” Não. Não quero mais!”.
Na verdade o que ela fez foi bastante diferente. limitou-se a aguentar, até onde a condição humana o permitiu ,limitou-se a absorver toda a maldade do impacto dos pulsos estéreis do marido. Limitou-se a ser apenas uma médica maltratada em casa.
A idade havia-lhe escorrido pelas mãos em areias finas, esquecida dela e dos seus sonhos, afundada nas mágoas de um idilico sonho a dois desfeito. Como um prédio frágil a ruir face ao correr dos dias.
Demoradamente, como se ousasse imaginar que reparavam nela, entrou devagar na pequena loja. Sabia que os primeiros instantes seriam cruciais, não só para ela como para quem a observava e pela primeira vez na sua vida não esboçou qualquer gesto defensivo, nem sentiu o frio no pescoço ou a pernas a tremerem.
Pela primeira vez na sua vida, ela se sentiu segura de si. Confiante e dona do seu destino. Sem qualquer tipo de hesitação, enfrentou a mulher enrugada do balcão:
-Bom dia!
-Bom Dia. faça o favor de dizer?
-Reparei no anuncio na porta e vinha concorrer á vaga.
A mulher olhou-a demoradamente, com o queixo altivo e rosto de sargento na revista da tropa. Num outro momento da sua vida, tal atitude seria mais que suficiente para amedrontar marta, mas hoje não. Hoje não era dia para lágrimas ou medos. Hoje ela era dona de si, da outra senhora, da loja, da rua, do Mundo.
-A senhora tem qualificações para trabalhar numa loja de roupa?
-Creio ter as suficientes.
-O que fazia antes?
Marta esperava esta pergunta. Na verdade, rezava baixinho para que ela fosse proferida. Era o seu desafio final:
-Trabalhei num Hospital, mas sou uma pessoa que se adapta facilmente ás circunstâncias.
-Compreendo. Mas o ordenado não é grande coisa.
-Não esperava que fosse. A questão é que seria algo que gostaria imenso de fazer.
A dona do estabelecimento olhou-a uma vez mais, pois marta era uma pessoa elegante, com postura e apesar de não se vestir com roupas dispendiosas, possuia nas suas combinações, um gosto e uma estética muito estudadas:
-Na verdade procurava gente mais jovem. Sabe como é, de preferência um primeiro emprego.
-Compreendo, mas posso lhe garantir que tenho responsabilidade e que lido bem com a hierarquia.
-Não duvido. mas…Enfim, terá que deixar o seu curriculo e duas fotografias. não sou só eu que mando, entende?
Percebeu ali o toque da discriminação. Ela tinha sido uma cirurgiã, uma pessoa com estudos. Abandonava isso tudo para um vazio do seu Ser, um qualquer trabalho onde pudesse se sentir útil e ocupada, mas o mercado de trabalho tinha as suas leis próprias, contrárias aos sonhos de uma nova Fénix.
-Muito bem, eu não vim preparada. Eu poderia então deixar o currículo aqui, esta tarde?
-Certamente, mas é como lhe digo, não sou eu que mando.
Enquanto saia, ela amaldiçoava este jeito bem português de sacudir as culpas de decisões do capote. haveria sempre alguém que mandaria, haveria sempre uma entidade desconhecida que só a ela competia as decisões. Alguém sem rosto que justificaria a ausência de trabalho a quem só procurava apenas isso mesmo.
Repentinamente as montras perdiam a beleza e o Coliseu, erguido, majestoso, diante dela, parecia apenas mais um edifício sem cor.
Sem se dar conta, as lágrimas principiaram a cair-lhe, timidamente pela face. perdera a primeira batalha e muito provavelmente a guerra. Claro que se Mário estivesse presente a humilharia. Diria que ela era uma perdedora, que apesar de curso superior, não conseguia nem um emprego numa loja de roupa de rua.
Susteve o passo incerto na calçada e meditou uns segundos. Era justamente isto que ela nunca poderia permitir. Que o passado surgisse das trevas, em ondas de mar revoltado.
Acenou a cabeça, abriu a carteira, apalpando o diário de Vega como que para ganhar força e olhando para uma papelaria entrou a sorrir timidamente.


No apartamento, após a saída de Marta, a pesada senhora apressou-se a invadir os seus aposentos. Procurava ávidamente uma resposta á sua inquietação e estava certa que a fedelha armada em fina, havia encontrado algo que não lhe pertencia.
O pior é que Marta raramente saía do quarto e durante estes dias ela espreitava essa oportunidade de para sempre apagar o passado.
Vega fora um erro desde o inicio, muitas vidas sofreram com esse erro, inclusivamente a sua pobre irmã Efigénia.
Ela não estava isenta de culpas também, mas o passado nunca deve ser mexido e subitamente esta nova inquilina veio com o nome dele na boca, abrindo túmulos e soltando segredos, e alienando antigos enredos.
Como uma perita, entrou discretamentee olhou de soslaio para a pequena habitação. Não havia de facto muitos locais onde procurar algo, pelo que a procura seria rápida. Porém a verdade é que a pesada senhora, não calculava um tempo mínimo, que a inquilina pudesse demorar no exterior.
Metódicamente começou pela cama, levantando com algum cuidado o colchão e passando a mão nos rebordos de madeira do estrado. Depois, ajoelhou-se com custo e pesquisou metódicamente debaixo da cama. Ergueu-se de seguida em sacrifício, e com bastante subtileza, abriu a gaveta pequena da mesinha de cabeceira. Vazia, absolutamente vazia. nem um papel, nem um extracto bancário, nem um lenço. nada!
Encolhendo os ombros, dirigiu-se ao armário, abrindo com o mínimo ruído possível as duas portas e pesquisou o interior, como um cão de caça, farejando uma hipotética toca de raposa. Alguns vestidos usados, uma almofada, e uns sapatos já gastos. Vasculhou os bolsos de uma Jeans pretas. Nada!
Coçou lentamente o queixo e dirigiu-se para o parapeito da janela, procurando alguma saliência:
-Se eu escondesse algo aqui, onde o esconderia?
Como resposta á sua questão mental, avançou para o único sitio possível e com uma aparente calma, levou a mão acima do armário, quando o som e passos a interrompeu.
Nervosamente, arrastou-se até á porta, calcando furiosamente a ponta do lençol que resvalava da cama.
Fechou cautelosamente a porta e dirigiu-se ao cimo da escadaria, onde para seu desgosto, viu o capacete do carteiro á sua espera.
Afinal tinha tido tempo. de qualquer forma, quem em seu perfeito juizo, guardaria algo em cima do guarda fatos, pensou.
Acenando melancólicamente a cabeça, principiou a descer as escadas, enquanto um nome de um fantasma do passado lhe surgia insistentemente na cabeça. Maldito Vega. o que a grã fina poderia ter encontrado?- Pensou.

2 comentários:

  1. Muito misterio no ar, ainda por desvendar!
    Afinal quem era vega?
    apenas um homem romantico, apaixonado que escrevia num diario???
    entao porque ele atormenta duas das personagens deste conto??
    uhmmm
    curiosa
    e a adorar!!

    beijos

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  2. A mestria e o fino revelar de alguns pormenores conseguem arrebatar o leitor naquele que é para mim, o teu melhor conto.
    Li de uma assentada o eskizofrenico, acompanhei a espaços o Enoah, mas esta forma de romance aparentemente light, encobre tanto fascinio, que é impossivel deixar de te ler.
    Sinceramente nunca sei o que espero encontrar em cada parágrafo teu.
    Curiosidade unica, nada em ti é deixado ao acaso, mesmo que o pareça. És de um raciocinio invulgar, sobretudo depois de perceber que é tudo de improviso. Mas aqui para nós, passas algum tempo por dia a magicar? Ou sai-te de rodo no momento de escrita. Se assim for, és um génio. Escreve!

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