sexta-feira, 27 de abril de 2012

Monólogo a Juzante e mais Além! - Parte 1




I - Spiritus

Fantasma, na crença popular, é a alma ou espírito de uma pessoa ou animal falecido que pode aparecer para os vivos de maneira visível ou através de outras formas de manifestação.

Creio que foi sensivelmente ontem, acho que pelo meio-dia, mais coisa menos coisa que aquilo aconteceu. De facto...Sim, recordo-me perfeitamente do badalar dos sinos da pequena igreja a marcar a hora em ponto, à esquina da minha casa, neste bairro pequeno e monótono onde moro, tendo a juzante as gardénias floridas da Dona Dulce, pobre criatura de veias marcadas nas pernas, como canais de rios numa imagem do google.
Mas onde ia eu? Á sim, foi como disse, sensivelmente pelo meio-dia que eu morri. Bom, quer dizer, não é ainda a hora oficial, isso deixo para o pessoal da Morgue que eu não podia tratar de tudo. Afinal estava a morrer.
Aquilo que mais tarde batizarei como o pior momento da minha vida, (e acredite caro leitor que tive muitos mais, mas de intensidade mais reduzida, pois neste foi o único em que efectivamente eu morri)  aconteceu como a maior parte dos meus acidentes (ou deveria chamar-lhe incidentes?), sem aviso, apenas com a convicção própria de que algo surgia errado.
Agora que penso nisso e vou ter uma Eternidade para finalmente me debruçar nos pormenores, declaro que senti umas palpitações no coração....Bem, para ser mais preciso, não era bem no coração...Imagine o leitor traçar uma linha recta do mamilo esquerdo até ao mamilo direito....Vá lá, começe a desenhar, não se preocupe comigo que estou morto... e sensívelmente a meio dessa linha trace-a levemente com um traço. Não precisa de ser um risco profundo. Apenas um risco ao de leve. Já está? Optimo, agora tenha o obséquio de desenhar uma pequena circunferência ao redor desse traço. Pronto, agora no canto inferior esquerdo da mesma circunferência desenhe um peqeuno ponto. Perfeito, era aí mesmo caro leitor, que eu senti umas palpitações.
Não era coisa de cuidado, pensei eu entre dentes, como que tentando disfarçar o esgar de dor que me assolava a face, mas mesmo assim deveria ter tido mais atenção. Mais preocupação. Maior indagação. Mas não...Não liguei.
O leitor aqui que não me julgue de leviandade, afinal era pouco experiente nestas coisas de morrer e que caramba, agora confesso que não estava muito preparado. Aquilo apanhou-me um pouco tempo depois, como um raio fulminante e lá está ...tudo a girar, a visão a fugir, as vozes ao fundo, os enjoos, os vómitos, os músculos faciais, a ausência de reacção. Não sei como é obvio a causa de morte, mas tambem agora isso é pouco importante para mim e para vocês.
O facto principal é que eu agora possuo aquilo que sempre me faltou em vida....tempo! o Inequestionável tempo. A maior riqueza do ser humano e não raras vezes tão desperdiçada. Oh, caro leitor e o quanto eu desperdicei o meu. Segundos incontáveis, que geraram minutos horrendos de inércia, que por sua vez transbordaram em horas de ócio horrível e assim num ápice, juntei anos e anos de profundo nada.
Mas parece-me que estou novamente a divagar, talvez fruto de estar morto, penso que a lucidez fica atrapalhada, vejamos a razão que me tráz aqui, diante de vocês como um fantasma ou assombração é apenas uma razão de puro capricho. Espere....passo a explicar de seguida, pois não pretendo zombar de si, isto tudo no fundo tem o seu quê, o seu propósito, o seu ratio empírico.
Passo pois a narrar aquilo que realmente me aflige. Li não sei onde, nem tão pouco há quantos anos que nesta vida nascemos para um determinado propósito, um nuclear objectivo de sermos dotados á nascença de um feito que o Destino reservou para nós. Ou seja, segundo percebi somos tipo personagens de teatro, colocadas no palco da vida para desempenhar um papel ou missão. Até aqui tudo bem, eu percebo a analogia aos jogos de vídeo e tal, mas a coisa complica-se pois segundo me recordo, a nós personagens colocadas em palco pelo Destino é-nos vedado o segredo desse papel ou missão. Temos de o descobrir, de o realizar e então sim, morreremos em paz e a coisa fica feita. Mas..(.nestas coisas há sempre um mas), se pelo contrário não atingirmos essa missão, não lograrmos esse feito, então estaremos condenados a retornar , reencarnando outras personagens, numa espécie de eterno retorno de Friedrich Nietzsche.
E isso caro leitor é absurdamente assustador! Ser eu uma vida inda vá que não vá, agora ser eu uma imensidão de vidas e séculos é um bocadinho sádico.
A verdade é que durante anos isto entranhou-se no meu espírito e sem o saber acalentei um desespero em tudo o que fazia, preocupava-me com a eternidade, creio!
Segundo a minha paranoia colegial, devia andar pelo secundário, a eternidade era qualquer coisa associada ao ininteligível, um bocado como aqueles assuntos melindrosos que nem sempre podemos discutir alegremente na mesa do café ou entre amigos. Era aquele assunto que vez em quando me martelava o espírito, levando-me em noitadas longas por Sartre, Platão e outras companhias que recordo agora tambem já estavam mortas na altura em que as lia...Bom, pelo menos alguns deles. Nunca fui muito selecto nas amizades nocturnas, é um facto.
Timidamente e talvez ajudado por não ser o mais popular na escola, comecei os meus primeiros escritos, muito normais, nada filosofais, muito...banais.
Aquilo ia aos repelões, ora me dava para escrever e escrever e voltar a escrever, como era capaz da mais absoluta inércia, que poderiam durar meses.
Tudo muito secreto, tudo muito discreto, guardado a sete chaves e aí ficavam, com as folhas de papel a apodrecerem, os gatafunhos á presa lavrados( não havia computadores e as máquinas pesavam chumbo), na sempre expectativa de um dia as reler, as rever, as "encher"...Pois sim. Nunca. Acabaram por sumir, por desaparecer.
O leitor não me julgue mal, mas o que podia um puto de 17 anos saber da vida? Ou aos 27? ou aos 37? ui e muito menos aos 47. A verdade é que essa era a minha desculpa para não fechar o ciclo. Não me julgava bom escritor, não me julgava bom doutor, nem tão pouco bom professor. No fundo, não me julgava.
Com medo de acidentalmente poder escrever um Best Seller e quem sabe fechar o ciclo e partir em paz, justificava que ainda não podia acabar, que não estava pronto e cá ia vivendo.
Durante 30 anos no fundo acomulei pilhas de folhas, de ideias, de romances inacabados, de prosas às vezes mal amanhadas e agora...Caramba morri!
Afinal, esta não era a minha vida decidida pelo Destino....Que droga terei de voltar mais uma vez, quem sabe acerto!

3 comentários:

  1. Bom está para além das minhas expectativas, está para além de fantástico :)
    "Durante 30 anos no fundo acomulei pilhas de folhas, de ideias, de romances inacabados, de prosas às vezes mal amanhadas e agora...Caramba morri!" Adorei esta frase final.
    beijinhos*

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  2. A tua imensa capacidade de criação, nomeadamente a narrativa, é sempre cativante

    Abraço

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  3. Rir ou chorar eis a questão?!

    Dei por mim a desenhar a linha desde o mamilo esquerdo ao direito...até ao ponto...e tu atinges sempre o ponto...ponto em que cativas o leitor, em que o envolves na historia, em que fazes ele rir, chorar ou reflectir

    realço: "nesta vida nascemos para um determinado propósito (...)

    Não sei qual é o meu proposito ao certo... ja batalhei e ja achei ter descoberto esse proposito, mas enfim, apenas confiança em demasia... um deles sei qual é...pois esse proposito mantem me viva, mantem me a sonhar, sorrir, chorar, enfim mil e uma reacçºoes ao te ler...isto paara dizer q eu sei que uma das coisas que eu tenho que fazer nesta vida é te ler...p sobreviver ;)

    obrigado roger por mais um momento deliciante. Aguardo por mais...

    P.S. talvez o teu destaque merecido na literatura surja depois de morto :P eheheh

    beijos

    ass. Fã nº 1!

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