sábado, 4 de agosto de 2012

O Doce Malandro - Capítulo 1 - Parte 1



Entre deusas e bofetões
Entre dados e coronéis
Entre parangolés e patrões
O malandro anda assim de viés
.

A Volta do Malandro : Chico Buarque


Uma fina aragem primaveril toldava os movimentos do jovem de pernas esguias, que com um passo certo e metódico, gingava por entre os transeuntes que circulavam pela calçada da pequena avenida.
Segurando na mão uma mala pequena como se fosse um tesouro, contendo sofregamente tudo o que lhe sobrava de uma juventude precária e por vezes sofrível no interior rural do País, o jovem prestava a máxima atenção às fachadas dos prédios, mais concretamente aos números pares que desfilavam em contagem decrescente à medida que o passeio esburacado desaparecia sob os seus passos.
Desde que abandonara o autocarro de excursão que o trouxera da sua aldeia,que ele fazia um esforço enorme para não se deixar impressionar com o que via ou o que ouvia. Durante anos, ouvira sons e ecos de memórias de conhecidos, a falarem da grande cidade, dos seus habitantes de roupas finas, das salas de cinema, dos bares, de discotecas. Ouvira incontáveis histórias sobre o progresso, sobre oportundades de vida, que farto das insinuações do seu pai, sobre o grande futuro que a lavoura teria no seu Destino, aviou caminho e abandonou  sem remorsos uma vida de enxada.
Durante essa hora, desde que abandonou o autocarro, nada mais vira senão gente apressada,indiferente a quem com eles cruzava nas ruas sujas e recebera nos ouvidos o barulho ensurdecedor do constante trânsito.
Durante vinte longos minutos, andou perdido sem conseguir a minima orientação possível que o levasse rapidamente à morada que anotara à pressa no papel e quando finalmente uma senhora de idade lhe deu a devida atenção, descobriu que inevitavelmente se havia afastado do seu destino, ao invés de se aproximar, pelo que teve de retroceder e correr apressadamente seguindo as devidas orientações que recebera da idosa senhora.
Agora que se sentia perto do seu destino,abrandou o passo como que respirando devidamente e em frente à velha entrada do sujo edifício, parou conferindo três vezes o número da porta com o pedaço de papel amachucado que trazia consigo.
Pousando demoradamente a mala de pequenas dimensões, consultou o nome dos residentes na caixa de correio do edifício e batendo o indicador no nome desejado, aproveitou a porta entreaberta do prédio, entrando cautelosamente em direcção à velha escadaria de madeira, enquanto que mentalmente estudava a melhor forma de abordagem possível. Como por vezes sucede na vida, ele tivera a sorte de um Mundo inteiro, tivera na verdade aquele fogacho, aquela centelha de esperteza, que quando bem aproveitada e accionada no tempo certo pode levar a grandes mudanças.
De início mostrara-se pouco receptivo a perceber essa mesma veia de oportunismo que durante os próximos anos lhe moldariam o destino, mas agora estava confiante na sua sorte.
Afinal, ele tinha tudo a ganhar aqui e pouco a perder. O inicio dos anos oitenta traziam ao seu espírito a crença num futuro melhor e se ele, para o conseguir tinha que rodear a lei e ocupar o lugar de outra pessoa, então menos mal. Tudo era preferível ao regresso aquele fim do Mundo, onde até agora errara, sem destino.
Estacando no cimo da escadaria, diante da velha porta de madeira , tossiu duas vezes como que tentando ganhar coragem e de pronto estalou os nós dos dedos, aguardando resposta.
Não era propriamente receio, mas um nervoso miudinho que ainda lhe toldava os cantos do lábio inferior.
Pesadamente a porta abriu-se revelando uma senhora de pequena estatura, de olhar desconfiado:
-Sim?
-Dona Efigénia?
-Sim,sou eu.
-Sou o Marco, o seu sobrinho. Recebeu a minha carta, espero.
-Marco?
-Sim Marco Freitas, filho do seu irmão João. Eu escrevi-lhe há 2 semanas...
Durante uns incontáveis quinze segundos, a idosa senhora permaneceu estática, calada e de sobrolho erguido, para pausadamente anunciar:
-Na verdade recebi a sua carta, foi a Teresinha quem ma leu, que com esta idade a vista já me treme. Mas entre, não fique aí especado como se tivesse medo que eu lhe batesse.
 Como um pardal em  dias de sol,o jovem precipitou-se para o interior da habitação, sentindo a porta fechar-se atrás de si. Esperava no seu íntimo, várias reacções e tinha usado as seis horas de viagem a imaginar o que diria, o que ouviria. Mas de certa forma, esta reacção foi segundo os seus planos, completamente inapropriada.
Como um general em campanha, em frente do seu exército, a idosa senhora conduziu-o até à sala de estar, que sem duvida alguma, seria o seu Quartel General, e sentando-se no único cadeirão disponível, fuzilou-o de perguntas:
-Então és o Marco. Sabes que nunca te vi, apenas em fotografias,que o meu fraco irmão teve a decência de enviar. Esse pouco prestável rapaz, que nunca teve a cabeça no sítio...Imagine-se casar tão novo com uma mulher de má fama.
-De má fama?
-Pois claro, então divorciada....Imagine-se! Separar o homem o que Deus uniu....Maldito rapaz!
-Fala de Vera, a minha mãe.
Efigénia, levou a mão com os seus  dedos finos e pouco delicados, ao seu queixo redondo e percebendo o tom de desafio do sujeito, torneou:
-Falo desse inútil que é o teu pai! Sempre lhe disse o que pensava, afinal crescemos na mesma casa. Uma casa boa, de gente de família e tementes a Deus.
-Pois, sobre isso eu...
-Que idade tens rapaz?
-Dezanove anos, minha tia.
-Foi com essa idade que ele se afastou...
-Lamento, eu...
-E os estudos? Andas na escola?
-Não, minha tia, eu...
-Logo vi. Vadio como o teu pai, isto se não fores bastardo.
Ocultado pela sua ágil língua, um fino curso de sangue corria, pelo lábio inferior, mordido na explosão de nervos e no controle total que ele tentava manter sobre si e sobre a sua apresentação. 
Após dois anos de intensa preparação, após assumir a identidade do seu amigo Marco Freitas, quando a viatura que a família seguia se despistou, ciente de que as duas partes da família não se falavam. Era o plano perfeito. Assumindo a identidade do jovem, devorando tudo o que ele lhe contava sobre a tia do Porto, Anselmo percebia que esta era a sua oportunidade.
Demorou na verdade algum tempo até encontrar uma carta da suposta tia, por sinal a romper laços familiares e sem saber o que fazer com ela, guardou-a até ao momento do acidente.
Em dois meses falava como Marco, vestia-se como ele,decorara as datas importantes da sua vida e agora que se achava preparado, não iria sucumbir:
-Garanto minha tia, que sou legítimo e compreendo a sua frustração enquanto senhora de bem e temente ao bom Deus, mas peço-lhe que não me julgue pelas afrontas de outros.
O apelo saíra sincero, fruto do seu auto-controle e de certa forma suavizou a senhora:
-Seja, talvez esteja a ser dura de mais. Mas então que fazeis da vida jovem?
-Minha tia, eu estudo para padre.
Como se de repente as nuvens negras se abrissem e o sol raiasse pelas trevas, a magra senhora sorriu num misto de satisfação e orgulho:
-Para padre?
-Sim minha tia, estive entregue aos cuidados e protecção do padre Estêvão...Trata-se de um pároco com muita estima na nossa aldeia...
-Eu conheço o bom padre Estêvão. 
-Ah sim, (Marco foi apanhado de surpresa). Pois bem então já sabe da minha história.
-Se esse é o seu futuro, o que o traz aqui ao Porto,  ao certo?
-Provavelmente serei colocado aqui no fim de Agosto e então aproveito para conhecer a cidade e habituar-me aos seus costumes.
No seu intimo a senhora sorriu e preparava uma advertência, quando uma voz os surpreendeu:
-Efigénia eu esqueci-me de comprar o detergente, mas...
-Marta, o nosso sobrinho Ferreira veio nos visitar!
Pela primeira vez em muitos anos o jovem foi apanhado completamente de surpresa. Nunca ouvira qualquer referência a uma outra irmã. Não tinha qualquer plano de apoio e de repente o seu coração começou a bater aceleradamente e da sua testa rolavam  finas gotas de cor de prata, de um suor nervoso.

3 comentários:

  1. A tua capacidade criativa é infinda :)

    Abraço

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  2. Estou boquiaberta Rogério, o teu talento é enorme, e essa tua criatividade então é gigante :)
    beijos

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