quarta-feira, 22 de agosto de 2012

O Doce Malandro - Capítulo 1 - Parte 3



Deixa balançar a maré
E a poeira assentar no chão
Deixa a praça virar um salão
Que o malandro é barão da ralé.

Chico Buarque:" A volta do malandro"


De mão austera pousada sobre o fino braço atlético do jovem impostor,  Efigénia mantinha-se concentrada e apaixonada na torrente de improvisos que brotavam como jactos de água límpida da boca dele.
Desde muito novo, fora dotado com uma capacidade única de dotes de oratória invulgares. Conseguia facilmente apaixonar o seu interlocutor e nos seus lábios, as palavras mais banais ganhavam contornos quase místicos que invadiam a razão pura dos intervenientes, baralhando-os, fazendo-os acreditar. No fundo, as palavras em Horácio ganhavam o dom de persuasão, podendo até com risco imediato, qualquer tolice ganhar contornos de certezas absolutas.
De fraca escolaridade, ao aperceber-se que tinha o dom de cativar, passou a estudar as palavras, a cultivar o culto da dicção, da pronuncia e sobretudo a eliminar o sotaque nortenho. Não pretendia nada que o ligasse um dia a qualquer território, a qualquer item do seu passado, desejava ser apenas e tão só um cidadão do mundo e teria que o conquistar.
Os outros dois aspectos em que igualmente tinha perdido algum tempo a melhorar, foram o seu aspecto físico (redobrou horas de treino improvisadas, para definir os contornos musculares do serviço diário no campo) e o visual, que teria de ser forçosamente completado na Invicta cidade, com as suas montras apelativas. Horácio tinha a forte convicção que com a aparência certa e um certo maneirismo na arte de falar e estar seriam a sua rampa de lançamento para o fim das tarde de sol de verão sob o corpo dobrado no campo e inevitavelmente o fim das pontas dos dedos desfeitas e quase mortas sob a geada de Inverno.
Ele queria e iria ter dinheiro, ter boa roupa, ter uma vida sem sobressaltos. Mas tal vida, nunca poderia provir de um emprego duro ou de condições precárias. Uma vez lhe disseram que com talento, numa grande cidade um tipo como ele, com a habilidade necessária teria o Mundo a seus pés. Obviamente que haveria sempre uma certa dose de exagero, mas de certa forma aquilo lhe ficou a martelar no seu interior e sem ele se dar conta a ganhar forma na sua mente.
Deitado na cama, de cuecas, um hábito antigo que usava como forma de preservar a sua melhor roupa,( evitando assim o surgimento de vinco, o enrugar das melhores calças que tinha), com as mãos cruzadas atrás da nuca Horácio fixava o seu olhar num ponto abstracto do tecto de branco desbotado, recordando todos os aspectos da conversa que tivera com a dona da casa e simultaneamente analisava o modo como o seu plano decorria. O chato da situação, o único contratempo pelo qual ele não esperava, deveu-se a ter ficado sem o seu dinheiro. Bom, pelo menos parte importante dele , mas em contrapartida estava ciente que tinha acabado de comprar alguma simpatia de Efigénia. Congratulava-se pelo modo eficiente como tinha torneado o surgimento da irmã e sobretudo a astúcia que tivera em posicionar-se entre a humildade e a confiança. Uma forma um tanto atabalhoada de "puxar" ao lado maternal, mas que indubitavelmente funcionara.
Esboçou um sorriso auspicioso e saltou imediatamente da cama, analisando a parca mobília do quarto. O roupeiro era antigo, de madeira barata e sem grandes adornos. A cama de solteiro era relativamente pequena e enquanto esteve deitado, sentiu com facilidade uns altos no colchão que lhe transmitiam a ideia de que se tratava de um colchão de molas e algumas já tinham cedido. Porém a sua atenção centrou-se na pequena secretária a imitar pinho, com quatro gavetas embutidas e notou ele com  alguma surpresa, a primeira e mais pequena delas era dotada de uma fechadura simples.
Aproximou-se com relativo interesse, próprio de quem não esperava acalentar grandes expectativas, sentou-se comodamente na cadeira e com, um puxão fez a gaveta deslizar até revelar aos seus olhos todo o seu conteúdo.
Todo o seu rico espólio traduzia-se numa única chave de ferro de pequenas dimensões, de serrado simples e num caderno estilo sebenta, imaculadamente fechado. Seria de facto muita sorte encontrar algo ali de revelador. Quando abriu a gaveta, o fez na expectativa de com sorte poder encontrar um envelope do banco ou algum outro documento sobre Efigénia. Não era um pensamento infantil, dado que como não estavam à espera dele, poderiam perfeitamente não ter arrumado a gaveta e é sabido o quanto as mulheres adoram  atirar correspondência para o fundo de uma gaveta.
Olhou de soslaio a pequena divisão e quase sem perceber, o seu cérebro continuou a trabalhar a alta velocidade, sendo certo e sabido que tinha vindo para ficar,seria necessário algumas alterações.
Deixando-se cair pesadamente na cama, começou mentalmente a elaborar a sua lista: Comprar um rádio de pilhas seria solução, não só matava o tédio, como poderia fortalecer o seu embuste, sintonizando-o para a hora da missa e alguns adereços de pequena monta, de forma a ser bastante persuasivo em toda a sua encenação.
Esticou com alegre entusiasmo a mão para a sua mochila, retirando o pequeno mapa da cidade do Porto que comprara dois meses antes e releu as suas anotações, impressas a caneta BIC azul, de um modo disforme pelas costas brancas do mapa. O seu dedo indicador seguiu a linha azul que demarcava o caminho entre a casa da senhora, onde ele agora se encontrava hospedado até à suposta igreja que usara como engodo e sempre sorridente voltou a guardar o mapa.
Sentia-se sempre inseguro nos pormenores, talvez por não lhe dar a devida importância. o que constantemente o obrigava a rever nomes e localizações para evitar enganos.
 A ideia de se fazer passar por padre até o agradou de início, dado que ao associar a figura do Padre Estêvão  transmitia uma enorme credibilidade à sua falsa história pessoal. Porém, agora friamente e constatando o nível máximo de beatismo da Dona Efigénia, talvez não tenha sido a melhor opção. Agora era no entanto tarde para se desviar da rota e embalado pela sua autoconfiança, fechou os olhos, aguardando pacientemente a hora da refeição.
Sob o bater das sete  horas da tarde, orgulhosamente anunciada pelo relógio de parede do corredor de acesso aos quartos, abriu demoradamente os olhos como se tivesse estado a dormir uma eternidade e o que a principio cuidou ser uma sombra, agora ganhava forma diante dele, olhando-o com grande interesse. Não conhecendo a pessoa que o olhava com redobrado interesse e visivelmente assustado com a jovem de cabelos pretos diante de si, ele tentou reagiu por impulso, tentando ocultar a frente das cuecas com as suas mãos.
Com um sorriso de malícia, a jovem sentou-se na cama. sem desviar o olhar e indagou:
-Então és o famoso padre?
-Padre?Sim...quer dizer, sim....Penso que sim.
-Nervoso ?
-Eu? Não, porque estaria?
-Bom, parece-me nervoso.
-Asseguro que não. Talvez um pouco assustado.
-Sou assustadora?
O rapaz da retórica, dono de si e sempre com resposta pronta, sentia-se agora perdidamente confuso:
-Não foi isso que quis dizer...
-Foi o que pareceu. Mas eu não mordo, juro!
-Acredito. - Suspirou ele visivelmente abalado.
-Desculpa ter invadido o teu quarto, mas não resisti à curiosidade.
-Curiosidade acerca de quê?
Num gesto rápido a sua mão esquerda deslizou por dentro das cuecas dele e agarrando o seu sexo, sussurrou ou ouvido:
-Curiosidade em saber  se os padres se excitam...
Reunindo toda a sua rapidez e concentração, saltou da cama afastando-a imediatamente, com voz autoritária:
-Não sei quem a menina é, nem o que pensa estar a fazer, mas por Deus se dê ao respeito!
Encostada à porta do quarto, perante a visão do jovem irado com o sexo levantado, espreitando sob as cuecas ela riu e a custo, informou:
-Não lhe devem ter contado, mas faço parte da casa e acredite que nos vamos ver mais vezes.
-Se entretanto se comportar.
-Sabe padre, eu nunca fui em religiões, mas diante desta visão, estou a pensar seriamente em me converter.
Soltando um ultimo riso, saiu apressadamente, não chegando a ouvir atrás de si o desabafo de um jovem enervado:
 -Só faltava isto! Esta doida vai-me dar trabalho.

1 comentário:

  1. Parabéns Rogério, mais uma parte fantástica, está a tornar-se absolutamente viciante este conto. :)
    bj

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