sábado, 4 de maio de 2013

O Doce Malandro - Capítulo 2- Parte 2




Ás vezes o dia nasce diferente,
com horas mais largas, mórbidas, amargas...
Como se as nossas angustias fossem ponteiros encravados no tempo,
presos naquele minuto triste em q deixámos de nos ver...
São dias feitos noites de luto,
onde o momento dorme e o prazer não existe, nem me conhece...


Inês Dunas 
http://librisscriptaest.blogspot.pt/2009/12/nao-mata-mas-doi.html




Enquanto caminhava pensativamente pelo passeio, descendo o Bonfim em direcção ao Campo 24 de Agosto, com a mochila a tiracolo  a sacudir-lhe nas costas, indiferente aos olhares de quem esperava a sua viagem para casa nas respectivas paragens de autocarros, ela meditava no breve encontro que tivera com Marco, o padre residente lá de casa e de certa forma sentia-se envergonhada pelo facto de o ter achincalhado, ainda para mais num sítio público, diante daqueles que um dia o poderiam ver diante do altar da Igreja do Bonfim celebrando uma missa de Domingo.
Por vezes ela exagerava, pisava a linha da decência e sem o querer acabava por magoar quem dela se aproximasse. 
Ela sabia disso tudo, até porque tinha de certa forma sido o seu procedimento habitual até aí. Tal procedimento trouxera-lhe contudo um afastamento dos amigos e os outros, aqueles que ainda a "toleravam", faziam-no por medo das suas atitudes. Mas de modo algum, tal atitude encenada lhe trouxera respeito por parte dos outros. Apenas medo ou ódio. Teria de ser algo que ela teria de rever, mas com este Marco era tudo diferente.

De certa forma Verónica sentia-se insegura consigo mesma, dado que excepto com a tia nunca usara este tipo de arrogância com ninguém da família, não percebendo porque só a presença do jovem padre a deixava constrangida, irritada e simultaneamente confusa e ansiosa.
No fundo era como se ele tivesse artes mágicas, como se de certa forma conseguisse romper o seu escudo invisível, como se a ela fosse inútil todas as barreiras que levantava.
Ela não era assim tão "azeda", tão má quanto a pintavam ou a imaginavam. Não tinha de facto na sua essência metade da malícia que exibia nos corredores da escola, no dia-a-dia com colegas ou nos confrontos com o dito padre.
Toda a sua aparência era apenas o seu modo de defesa, pois no íntimo, ela sabia-o bem, era tão vulnerável quanto um chão árido sob as primeiras fortes chuvadas.
Inevitavelmente, pensava ela enquanto calcorreava as beiras do passeios com as suas botas altas, o visitante que aterrara lá em casa, ocupava-lhe a mente e o corpo.
Era como um vírus que notando uma brecha nas suas defesas, se instalava e se reproduzia a uma velocidade estonteante.
Como podia alguém que se diz padre, cativar o sexo oposto desta maneira? Porque razão ele é sempre tão tímido, tão misterioso, tão reservado? Talvez o facto que a incomodava mais tivesse a ver com a provável afinidade familiar com este estranho. de certa forma, aos olhos dela, não lhe parecia de todo o Marco que lhe haviam descrito. 
Segundo o que a mãe lhe contara ele antigamente era extrovertido, alegre e sempre de resposta fácil e pronta. Mas este que agora ocupava a casa da família e secretamente toda a sua alma, não era de todo extrovertido e muito menos de resposta fácil.
Na cabeça dela, veio-lhe a imagem do jantar em família, dos modos amplos com que ele falava e da capacidade de fugir a questões da família, como se de certa forma temesse algo.
Mas que podia ele temer? Efigénia a tia dele e dona da casa parecia rendida aos seus encantos e até cometia a heresia de lhe sorrir,(algo que ela podia contar pelos dedos as vezes que presenciara tal facto), a sua mãe tecia igualmente rasgados elogios à presença do jovem padre e ao facto de ser um "menino" tão delicado que ela não podia perceber a razão de todo aquele embaraço dele.Quando se tem uma plateia favorável a tendência habitual é falar demais e nunca se remeter para longos silêncios. 
Levando a mão ao queixo, mais num gesto autómato que de reflexão Verónica estacou abruptamente no passeio e então com um solavanco de ombros, como se tivesse sido atingida por uma descarga eléctrica repentina, apercebeu-se de súbito se ele evitava falar dos próprios pais, seria sem dúvida devido a ter algo a esconder. E se ele não fosse realmente padre? E se tudo aquilo que ele dissera desde que chegara fosse apenas um monte de mentiras?
Se fosse esse o caso, poderia desmascará-lo, voltar a ganhar a simpatia e confiança da Tia Efigénia e de certa forma suavizar a sua reputação dentro de casa, dar uma alegria à sua mãe e suavizar todas as tropelias que havia cometido.
Como quem germina um plano ousado mentalmente, percebeu que teria três chances de facilmente o desmascarar : Poderia arranjar o número de telefone dos pais e ligar. De seguida iria pessoalmente à terrinha dele e recolheria testemunhas e depoimentos e por fim o confrontaria em plena mesa de jantar.
Analisou mentalmente o plano e após alguma meditação afastou a hipótese. Se de facto tudo não passava de uma mentira, ele já teria precavido essa situação, tendo talvez usado a mesma mentira em casa , pelo que o telefonema e a viagem seria em vão.
Com um aceno de cabeça afirmativo, como se estivesse a concordar com o que ela própria havia pensado, sentiu-se mais ousada e já que se encontrava em matéria de especulação perguntou-se se ele seria mesmo quem afirmava ser.
E se ele fosse um impostor? E se por qualquer razão obscura ele se estivesse a passar por um familiar, de quem nada sabiam, dado os cortes de relações de Efigénia com esse lado da família?
Motivada por este pensamento lembrou-se das fotos da família que Efigénia sempre guardava na gaveta da velha escrivaninha. Se a sua mãe sempre lhe dissera que as únicas fotos  que  existiam na casa eram dele em bebé, então talvez ele mantivesse traços característicos que de certa forma pudessem ser confirmados pelas fotos.
De certa forma era-lhe fácil o acesso às mesmas fotos, bastando pedir à sua tia Efigénia que lhe facultasse as fotos e poderia ver  rapidamente se o feeling que lhe assaltara tinha a sua razão de ser.
Apesar de estar a poucos metros de casa, a ela parecia-lhe que faltavam milhares e milhares de quilómetros, que lhe faltava um imenso Continente de cascalho afiado e incerto no qual os seus passos pareciam ser inseguros e lentos.
Como uma colegial prestes a cometer o seu primeiro delito, sentia as pernas a tremer, não sabendo ao certo se seria devido a um receio de descobrir algo que revolucionaria a sua posição dentro de casa ou se seria a adrenalina de arrumar de vez com quem a deixava num estado de ansiedade e nervosismo latente, que a tornava frágil e impotente de lidar com a presença dele.
As chaves da porta da entrada tremiam-lhe nas mãos e a sua respiração era mais adequada a quem tivesse escalado o Everest. Tentou por diversas vezes se acalmar e entrou decidida dentro da habitação, avançando a custo pelo corredor apertado até chegar a sala e então...
À sua frente, perante a incredulidade do que vi, encostou-se à parede e fitou sem reacção o sorriso rasgado de Efigénia que passando fotografia a fotografia para as mãos do jovem padre, o fazia acrescentando um comentário  "derretido" sobre o momento em que as fotos haviam sido tiradas. Apontando com o seu dedo hirto e enrugado quem era quem e enaltecendo a "cara de anjo" que Mauro tinha em bebé.
De uma assentada, por mais que agora ela fizesse questão de comparar e de procurar diferenças, de nada lhe serviria, pois tal atitude seria vista como mais uma das suas birras ou manias e não seria levada em conta.
Mordendo o lábio inferior, indiferente ao olhar apreensivo que o padre lhe lançava ela percebeu que havia perdido, pela segunda vez depois do jantar outro duelo. Cruzando as mãos atrás das costas, murmurou para si:
-Sacana do gajo que parece que é bruxo!





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