quarta-feira, 30 de setembro de 2015

A Saga de Arkhan - Pretorius - Capítulo 10


Amor, eclipse que eclipsa a morte...
 Lápide de linguagem perpetua
e rosas imortais
num império de sentidos sem sentido de orientação.

Inês Dunas : Dádiva...
http://librisscriptaest.blogspot.pt/2015/09/dadiva.html



A ALA NORTE


O mensageiro real partira a todo o galope, percorrendo avidamente as estreitas ruas da Villa, ansioso por entregar o recado e dar fim à sua tarefa. de todos os recados que a corte lhe pudesse solicitar este era o mais estranho e simultaneamente o mais fácil de realizar. O estranho no recado em si, era o modo nervoso evidenciado pela aia da imperatriz o que aliado a certos comentários que ouvira do pessoal a trabalhar no castelo de Orgutt tornava tudo ainda mais confuso. Era estranho, para a cabeça do individuo compreender o porquê de tanto nervosismo e sobretudo a urgência do recado, mas se ele sobrevivera estes anos todos ao serviço do mau feitio do imperador e do azedume do conselheiro, tal devia-se a não questionar ordens e a não pensar. Cumpria a missão e regressava. Simples e eficaz.
Os minutos porém passavam a correr e o mensageiro que já tinha percorrido todos os locais onde o seu alvo pudesse estar começava a desesperar. Sabia de antemão que o alvo teria de estar na Villa, bem no coração do império e contudo parecia ter-se volatizado  no ar.
Desesperado, ousou recorrer ao método mais perigoso, mas simultaneamente mais eficaz. Indagaria os transeuntes sobre o seu alvo e a sua exacta localização. Confiante que talvez tivesse mais sorte, dado que percebera que o seu alvo não era homem de hábitos e afinal não havia qualquer pedido de sigilo sobre o seu recado, apenas urgência,
Quando por fim um conterrâneo lhe confidenciou que o general que procurava tinha sido avistado meio embriagado em Gruehr, achou que essa informação era errada e no entanto, nada mais tendo a perder, avançou a todo o galope pelo lado Oeste da Villa.
Encostado ao balcão tosco de madeira o general Brunnus cantava o hino de Orgutt, batendo repetidamente com a base da caneca de barro no tampo do balcão, enquanto o taberneiro o mirava apreensivo, sem no entanto ter a mínima coragem de o chamar à atenção. O gordo sujeito de queixo duplo sabia exactamente quem tinha à sua frente e não obstante odiar o imperador e a sua avareza, respeitava e idolatrava o jovem herói e orgulho do império. Como Brunnus, o taberneiro crescera a ouvir as façanhas do exército invencível de Braddus, da força sem igual da cavalaria de Vill e da aura deste general que ria na face do perigo e cujas flechas se afastavam dele. Assim, mesmo sendo um embaraço para si e para os seus clientes, só a presença de tal herói dentro da sua taberna o enchia de orgulho e o fazia tolerar as obscenidades amiúde proferidas pela boca do álcool do sujeito.Por vezes, como que recuperando a lucidez , recuperava o fôlego e declamava o que lhe ia na alma:
-Como é curta a duração do amor, quando é fervida no desespero do segredo, em sangue arterial pulsante. Como é desesperante viver uma vida inteira um falso amor e no momento em que outro amor, mais íntimo e verdadeiro nos colhe, já não o podemos ter livremente. Como é triste encontrar um arco-íris de emoções  e não poder recolher deste o pote de ouro da felicidade. Se a vida dura um segundo, porque tem o verdadeiro amor de morrer primeiro?
O taberneiro hesitava entre aplaudir tão fugaz momento ou fingir que nada tinha ouvido. Não que o seu ouvido fosse insensível à poesia ou ao pensamento filosófico, mas o tom exageradamente alto usado pelo general tornava impossível a quem quer que fosse não olhar ou sorrir e se o que lhe contavam de Brunnus fosse verdade, ao sentir-se gozado, puxaria da espada e seria um momento que o gordo sujeito não queria nem imaginar.
O mensageiro percebeu que havia encontrado o seu alvo ainda antes de amarrar as rédeas do cavalo, pois a voz rude da embriaguez do general ouvia-se perfeitamente bem no exterior. Quando ele entrou, Brunnus empunhava a espada, descrevendo círculos imaginários no ar, perante a face páilda do taberneiro e de alguns clientes que sorriam. Tossindo ao de leve de forma a chamar a atenção, mas sem alarmar o general, o mensageiro aproximou-se e rapidamente debitou a informação:
-General Brunnus, sua alteza, a imperatriz Maleena solicita com urgência a sua presença, na Ala Norte do castelo.
-Ala Norte? - Indagou o jovem, fazendo um nítido esforço para focar o olhar no mensageiro.
-Correcto senhor. Esse é o recado!
-O que raio vou eu fazer à Ala Norte? Acaso sou convidado de honra?
O mensageiro ficou por breves momentos tentado a emitir a sua opinião, pois não achava que fosse assim tão despropositado a imperatriz solicitar a presença de alguém na Ala Norte, onde se situava a sala de recepção e onde usualmente a imperatriz recebia a fina flor de Orgutt para o tradicional chá da tarde. Mas após reconsiderar uns segundos, omitiu qualquer opinião pessoal:
-O recado está dado senhor. peço que me autorizais a me retirar de volta para o castelo! - Solicitou o mensageiro com uma ligeira vénia.
-Bah, que se lixe. Entre esta zurrapa e um chá não deve haver grande diferença. - Escarneceu ele zangado pelo facto da imperatriz não marcar o encontro no lugar secreto.
-Senhor,não sei se seria aconselhável visitar sua alteza neste momento. - advertiu o taberneiro hesitantemente.- Claro que nada tenho a ver com isso, mas de certa forma é a reputação do meu estabelecimento que fica em risco.
-Quando sua alteza nos chama.... - Brunnus ia proferir uma heresia, quando num outro  momento de lucidez se calou, atirando nervosamente uns soberanos para cima do balcão. - Creio que as dívidas ficam saldadas!
Posteriormente deu um último retoque ao colarinho, alisou a roupa e embainhou cuidadosamente a espada, enquanto via o mensageiro a partir a galope de volta para o castelo. Antes de também ele partir, olhou nervosamente para a janela da Torre Norte e acenando nervosamente com a cabeça, bateu furiosamente os calcanhares no cavalo, cumprindo assim o chamamento da imperatriz .
No castelo a habitualmente calma e serena  Maleena era um poço de preocupações e isso notava-se de sobremaneira nas duas rugas fundas a sulcarem-lhe a testa habitualmente serena e brilhante do pó de arroz que sempre usava. Parecia à imperatriz que o mundo se unira para lhe complicar a vida. Porque perdera ela o controle da situação? Ela tinha o plano perfeito, não demasiado ousado para não criar insegurança no marido, nem demasiado vago para não o confundir. Durante meses traçara em pergaminhos, ideias e projectos, calculara os dias de viagem e gastara vários soberanos de ouro no pagamento de batedores e espiões. Enquanto Braddus se reunia com o seu séquito para tratar de batalhas contra outras cidades e reinos, ela estudava Ischtfall em segredo. Sabia mais do que qualquer pessoa sobre aquele reino devasso e no entanto não divulgara tudo. Seria mais um segredo guardado no fundo do seu coração, junto com as memórias quentes das cartas de Bruunus. Propositadamente simplificara nas missivas entregues a Zvar as informações dos batedores sobre Ischtfall.
Para além de omitir as  enormes catapultas defensivas nos extremos das duas ameias, omitiu igualmente a fama dos revestimentos defensivos, descritos como feitos por um metal único em Arkhan, tão leve e simultaneamente tão resistente que nenhuma flecha ou seta de besta o perfurava. Claro que o resultado poderia perfeitamente ser desastroso para Orgutt e era exactamente isso que ela esperava. Uma derrota cabal capaz de envergonhar e enfurecer o povo de Orgutt e então com Ischtfall fragilizado pelo combate com Braddus ,Brunnus chefiaria o mais impressionante exército de Arkhan, unindo-se ao Senhor da Guerra e ela seria a Imperatriz vitoriosa e Brunnus o novo rosto do poder de Orgutt.
Mas ao fim  de tantos anos, o seu esposo resolvera pensar por ele mesmo. Desdenhara do seu plano....Saberia ele a realidade de Ischtfall? Teria ele tido acesso aos mesmos relato? Desconfiaria ele da sua jogada? Com a mão esquerda a tremer ligeiramente um novo pensamento a atingiu : Saberia Braddus da sua relação secreta com Brunnus? Pelos Deuses, pensou ela amargurada, se assim fosse os dois estariam condenados, pois Orgutt sem o seu jovem general seria sempre intolerável.
Nervosa, Maleena sentou-se no seu cadeirão de seda  na Ala Norte, secundada pela aia que ocupava o a pequena cadeira mais atrás e meditava ,com a certeza de uma esposa que apenas procurava se livrar do tirano esposo, numa forma de resgatar o seu amante dos planos de invasão a Ischtfall,
Para Brunnus o dia surgira como uma espécie de castigo. Contrariamente ao que lhe fora prometido pela sua amante, não só iria em missão ladeado pelo imperador e por Vill como ainda lhe fora comunicado que ele não participaria em batalha, mas que assumiria o controle da gestão de Ischtfall. O general era jovem, mas não era parvo e não queria acreditar que Maleena tivesse a ousadia de o descartar, de o soprar para o outro extremo de Arkhan como o vento do inverno faz às folhas das árvores que perdem o vigor. Era verdade que ele já não sentia o vigor ou a paixão pelo combate e pela guerra, mas era igualmente verdade que havia sido a sua paixão pela imperatriz a fazê-lo perder o incentivo da carreira militar. Assim este seu regresso ao castelo era uma espécie de castigo, pois seria a primeira vez nos últimos tempos que se encontraria com ela na Ala Norte, uma ampla sala situada numa das ameias do castelo, desprovida de portas ou de qualquer recato aos olhos de estranhos. Se dúvidas houvessem na sua mente sobre as intenções da imperatriz, elas se dissiparam ao receber a mensagem.
Foi pois um general de rosto fechado e timbre de voz azedo aquele que entrou na Ala Norte do castelo de Orgutt:
-Haveis solicitado a minha presença, majestade? - Inquiriu fazendo uma vénia pouco precisa.
-General Brunnus, ainda bem que pôde vir. - A imperatriz olhava-o desconfiada.
-Não a poderia fazer esperar. Sabeis que estou sempre disponível para as suas ordens.- O general tentava acertar a vénia, repetindo-a atabalhoadamente o que motivou um sorriso disfarçado da aia.
-Folgo em saber, caro general. Chamei-o porque Julius precisa de si.
O general que tinha desistido da vénia, sentou-se apressadamente em frente da imperatriz:
-O jovem príncipe? Mas hoje não temos treino.
-Oh Brunnus - Gemeu Maleena não reparando no tom íntimo que usara. - Julius enfrentou o pai, vosso imperador e creio que os dois saíram magoados do confronto.
-Confronto, majestade? - Inquiriu o general perfeitamente confuso com o que ouvia.
-Sim, confronto verbal. Eu...Eu creio ter tido culpa nesse comportamento. - Assegurou Maleena quase a chorar.
O jovem general ficou uns segundos a tentar encontrar uma linha de raciocínio, ou contrapor algum argumento, mas abruptamente acabou por indagar:
-Ao certo que pretendeis da minha pessoa, majestade? 
-Que fale com Julius. Que o aconselhe da melhor maneira. Acredito que vós o podeis chamar à razão!
-Duvido majestade. - Respondeu ele secamente, arrependendo-se logo de seguida- Mas se achais que possa ter esse poder de persuasão, então tentarei.
-Ficarei grata pela sua tentativa, caro general.
Enquanto Brunnus se tentava recompor, Maleena bateu palmas, ordenando:
-Sallete, estou a ficar com frio. Creio ter deixado o meu lenço no quarto. Necessitava dele! 
-Perfeitamente majestade. - Concordou a jovem aia ciente que frio era a única coisa que a sua imperadora não tinha.ela apressou-se a segurar a mão de Brunnus, como para o forçar a focar o olhar na sua direcção e segredou:
-Oh Brunnus, não pensais decerto que todo este louco plano foi da minha lavra. Ele alterou o plano inicial...temo que ele possa saber algo.
-Que dizeis? Não fostes vós a sugerir a minha presença na missão?- Indagou ele confuso.
-Mas claro que não! -Exclamou a imperatriz levantando a voz. - Como sobrevivo eu sem poder ver a cor dos vossos olhos ou ouvir a vossa voz?
-Perdão Majestade...
-Maleena. Chamai-me pelo meu nome...Gosto da sonoridade do meu nome na vossa voz!
-Oh, como vos amo doce Maleena! - Retorquiu o jovem, fazendo um esforço para não a abraçar no meio da sala.
-Não sei o que se possa fazer! Se vós adoeceres decerto não participareis na missão. - Sugeriu ela palidamente.
-Acaso me achais covarde ou mentiroso? mesmo que isso resultasse como poderia eu conviver com os meus homens quando retornassem da missão....Não, o que me pedis não é solução!
-Se vós fugisseis esta noite, para um local distante...Eu partiria ao vosso encontro amado Brunnus.
O jovem ergueu-se apressadamente , assustado com a opção:
-Maleena não me interprete mal. Nada mais queria desta vida que gastá-la na sua companhia, mas o que me pedis é absolutamente impossível de concretizar. Não fugirei, não adoecerei, não trairei o meu destino. Se os Deuses me querem em Ischtfall, eu lá estarei.
Os olhos marejados de Maleena eram setas apontadas na sua direcção, que perfuravam o seu coração, sangrando-o de morte:
-Até vós, general Brunnus me abandonais num momento destes! 
Sem que o general pudesse responder, a aia entrou apressadamente na sala:
-Majestade, alguém esteve em vossos aposentos, remexendo nas vossas gavetas.
-O quê? - Inquiriu Maleena num tom  de desespero.
Pelos deuses, pensou ela a sentir-se sem forças, as cartas de Brunnus estavam lá!



1 comentário:

  1. "Como é curta a duração do amor, quando é fervida no desespero do segredo, em sangue arterial pulsante. Como é desesperante viver uma vida inteira um falso amor e no momento em que outro amor, mais íntimo e verdadeiro nos colhe, já não o podemos ter livremente. " Tão bonito e tão verdade! Brunnus prepara-se para abraçar o (cruel) destino e Maleena sente o cerco a apertar... E Gambinus reune moeda de troca?
    :)))
    Fico à espera (impaciente) do proximo!
    Beijinhos em ti

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