domingo, 20 de setembro de 2015

A Saga de Arkhan - Pretorius - Capítulo 7





O sonho é uma ilusão criteriosamente escolhida, uma mentira íntima que contamos a nós próprios,

deliciosa e inocente, como somente conseguem ser os desejos das crianças...

Inês Dunas



JULIUS PRETORIUS


O sonho é uma lança de dois bicos afiados com mestria de um mestre ferreiro, com um fio de lâmina cortante e fria pronta a matar objectivos ou a ferir de morte no coração do seu portador, castigando-o pela falta de perícia e se é bem verdade que a face de Arkhan está a mudar graças a um sonho, não deixa de ser igualmente verdade que a raiva gerada por aqueles que não se revêm em tal sonho ou nos custos que ele acarreta, crepita como ramo de salgueiro na chama de uma lareira. O dono desse sonho só tem um papel para com os outros que com ele vivem essa quimera. Partilhar e motivar! O pior são os outros, os que ficam com as ilusões mas de barriga ou alma vazia. A esses o sonho de uns transforma-se em pesadelo, em angústia e por vezes em raiva.
E Julius Pretorius caminhava inequivocamente na estrada da raiva, que lhe fervia o sangue em lume brando e toldava a sua razão nos caprichos de uma juventude irrequieta e ousada. 
Assim, atingidos os seus vinte e um anos, o príncipe de Orgutt estava convencido que finalmente iria ter uma voz mais activa no império e poder ter a liberdade de chamar a si mesmo temas tão sensíveis como o bem-estar da população, ou a satisfação de necessidades primárias dos súbditos do império e talvez ser a extensão do sonho do imperador para Arkhan. Porém Julius crescera sempre demasiado protegido, sempre rodeado dos seus guarda imperiais, sempre longe do povo, sempre escondido no castelo, como se ele fosse afectado por alguma má-formação ou tivesse o rosto demasiado monstruoso para ser visto pelos seus semelhantes. À medida que o tempo ia avançando e que ele ia amadurecendo começou a perceber que talvez esse afastamento, ou melhor dizendo, esse alheamento era imposto pelo imperador e por sua mãe, não tanto com o intuito de o proteger, mas de lhe ocultar o descontentamento que crescia amiúde na população e pior ainda, nas fileiras do próprio exército. Isso mesmo lhe fora adiantado pelo conselheiro Zvar ,em jeito de desabafo há cerca de duas semanas e confirmada pela falta de emoção do seu tutor de guerra e general Brunnus.
O general escolhido pela imperatriz para iniciar e educá-lo nas artes da esgrima, que no inicio era tão exigente com ele, corrigindo-lhe sistemática mente os passos na esgrima, ensinado-lhe todos os movimentos com a espada... corte, apara e ataca...corte apara e ataca...horas a fio, até ao músculo do seu braço direito lhe doer, para então simular com espadas de madeira um combate contra o seu tutor, mas em que a simulação só existia no nome, pois regra geral a disputa era intensa, originando por vezes hematomas nos braços e mãos do príncipe. A verdade é que podia cansar, doer e até sangrar, mas Julius adorava essas horas, treinando afincadamente à noite no quarto, com uma espada imaginária os mesmos passos e os mesmo malabarismos que aprendera.
Mas depois da última missão de Brunnus este mudara de certa forma a relação com ele. Os treinos eram agora pouco focados, pouco exigentes e pouco precisos e o jovem príncipe já não se digladiava contra o seu mentor, nem tão pouco este o corrigia se aldrabava algum passo, ou misturava técnicas. O brilho no olhar do militar era de uma intensidade diferente, a sua motivação era inexistente e o ensino em si tornara-se então oco e infecundo e Julius sentia-se mais um fantasma, um espectro no limbo, do que um praticante de esgrima e futuro imperador e isso preocupava de sobremaneira o jovem. Brunnus não era o seu pai, mas assumia perfeitamente bem, o papel de irmão mais velho, de confidente e companheiro. Afinal era com ele que passava mais horas e mais dias, pois o seu próprio pai estava demasiado ocupado a perseguir o seu sonho que a reparar no filho e mesmo a sua mãe sempre o tratara com relativo afastamento, relegando-o sistematicamente para segundo plano, ou desvalorizando qualquer pensamento que ele ousasse exprimir. Tratava-o sempre como uma criança, como se lhe estivesse a contar qualquer história fantástica e se o tema era política ou gestão do império ela ria-se das suas ideias, troçava dos seus argumentos e desvalorizava a mínima teoria que apresentasse. Até a ama de leite, parecia evitá-lo, como se ele carregasse no seu interior o fogo sinistro de toda a maldade do deus negro Rohrr dentro de si.
Aos dezanove anos Pretorius descobriu uma forma de abandonar o castelo, atravessar a muralha pelo portão Norte e fundir-se incógnito no centro do império. Havia sido por acidente, que ouvira certa vez o Mosteiral indagar Zvar acerca de uma menção num pergaminho, sobre uma passagem secreta que Bradus mandara fazer, quando ainda receava ataques de rebeldes, pois era uma forma rápida de fugir e de se colocar a salvo, através de uma escadaria íngreme e irregular e de um túnel com pouca segurança que passava por baixo da muralha, desembocando perto da margem do rio Ischmorr.
Cedo aprendeu que as tabernas do império eram o veículo ideal para "beber" do pensamento do império e nesse aspecto, o jovem príncipe tinha sido um bom ouvinte, paciente e generoso no pagamento de vinho a quem tivesse algo a dizer sobre o imperador. Fazia-o com discrição, mostrando-se inicialmente indiferente aos comentários, exagerando no descrédito ao que ouvia, mas sempre mandando servir mais vinho. A sua não-exposição à plebe do império acabara assim por lhe facilitar o contacto com aqueles que deviam ser escutados e protegidos pelo seu pai.
Julius era modesto nos soberanos que gastava, para não chamar a atenção de salteadores, mas geria-os com mestria para obter dividendos em forma de pensamentos e acusações que jamais ouviria se esses pobres homens soubessem que à sua frente estava o filho o próprio imperador e não um mercenário a soldo do império, personagem que ele usava nas tabernas e com as prostitutas nas suas saídas.
O que não conseguia  perceber era-lhe posteriormente avançado por Zvar em apartes, longe da presença do imperador e esse facto causava no jovem alguma apreensão, como se de certa forma o próprio conselheiro tivesse receio que o imperador o ouvisse.
Ciente do aumento do tom de contestação ao imperador e avisado pelo conselheiro que este planeava partir de novo em missão, o jovem principiou a temer uma revolução. Os rebeldes estavam a aproveitar a onda de insatisfação e mesmo os mercenários contratados de cidades derrotadas pareciam não concordar com o sonho do seu pai. 
Teria de fazer ver aos seus pais que ele já não era mais criança!



1 comentário:

  1. Uma personagem promissora, delicio-me sempre com a construção das tuas personagens, com a densidade cinzenta e profunda que lhes conferes!
    :)

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