sábado, 24 de outubro de 2015

A Saga de Arkhan - Pretorius - Capítulo 19




Tudo o que temos é aquilo que o corpo sabe,
com a mesma descartabilidade e efemeridade da pele,
 que nos veste a alma e se enxovalha com a idade... 

Inês Dunas : "Ao que o Corpo Sabe"
http://librisscriptaest.blogspot.pt/2014/05/ao-que-o-corpo-sabe.html




A DESCOBERTA


A noite havia caído pesadamente sob Orgutt, como se de certa forma o quisesse esconder e assim abafar a vergonha que já pairava na reputação, outrora inabalável de Braddus e seu séquito.
Pela calada, as bocas ávidas de cochicho da população comentavam em surdina o que ouviram os lacaios dizer do castelo e já não era segredo para ninguém que o imperador começava a perder a cabeça. Os seus detractores afiançavam mesmo  que o pobre homem ficara chalupa de vez e viam finalmente a oportunidade surgir. Pelas tabernas e vielas escondidas, teciam-se novos planos, novos comentários, novas histórias e o diz que disse ganhava já contornos preocupantes para quem os ouvisse.
Quase tão repentinamente como começara a lenda do incrível Braddus, surgia agora figura do louco atormentado que mata só por matar, que governa só por capricho. Num ápice o próprio exército comenta em surdina, dividindo-se na defesa do soberano ou no ataque verbal ao imperador. 
O general Vill tinha no seu seio os mais conservadores e leais cavaleiros do imperador, mas a repentina ausência de Brunnus, veio alastrar ainda mais a preocupação nos restantes batalhões. E as histórias agora eram um manto de mentiras e meias verdades, criadas e aumentadas nas bocas especulativas de quem algo queria do caos. E de facto o império estava doente!
Aproveitando a confusão no castelo, Pretorius resolveu visitar as tabernas, no seu disfarce habitual tantas vezes usado e sentir o pulso do seu povo. Estava contudo ciente do facto de que ao contrário de outras ocasiões, desta vez o castelo e todos os seus moradores, eram atentamente estudados e escrutinados pela cabeça de qualquer cidadão de Orgutt. De repente, parecia a Pretorius que todas as almas reunidas em tabernas eram mestres das tácticas políticas e cabeças verdadeiramente pensantes, dado que cada cabeça tinha a sua opinião e a manifestava ruidosamente por entre canecas de cerveja artesanal:
-Pois é como vos digo, os próprios generais estão em guerra, levados na loucura do Imperador!
-Calma lá com isso. - Advertiu o taberneiro nervosamente - Que falais de heróis do império.
O sujeito que tinha captado a atenção de Pretorious aparentava um estado de alcoolismo exagerado. Era alto e esguio, tendo contudo o cabelo atado num rabo de cavalo perfeito. Os ombros largos contrastavam com os braços curtos e de certa forma preocupavam o príncipe. Não era um lenhador, um ferreiro, um soldado. Com a curiosidade aguçada, o príncipe olhou as botas de pele de alce, impecavelmente limpas, o que afastou a ideia de se tratar de um agricultor. Motivado pela curiosidade, puxou um pouco mais a ponta do seu capuz e aproximou-se:
-Uma cerveja para este homem! - Pediu ele roucamente para disfarçar a voz, batendo amigavelmente a mão nas costas do sujeito.
-Não sei senhor. Eu creio já ter a minha conta! 
-Ora, meu bom homem. Entre amigos que é lá isso de se recusar uma oferenda? - Pretorius esforçava-se por falar de modo rude.
-Tendes razão senhor. Foi uma ofensa de minha parte.
O sujeito começava a olhar curiosamente para Pretorius:
-Não creio que tenhamos sido apresentados? - Indagou ele como que solicitando um nome.
-Rafin. Drummus Rafin, um amigo ao seu dispor. - Mentiu Pretorius.
-Rafin? Que raio de nome é esse? Sois estrangeiro?
O príncipe riu apressadamente preocupado em atrair atenções exageradas sobre si:
-Efectivamente. Sou vendedor de tecidos. Cheguei à dois dias a Orgutt.
-E de onde vindes?
-Para lá de Bohrr, Das terras pantanosas de Syrassa.
-Ah Syrassa...
-Conhece? - Indagou Pretorius com receio.
O sujeito levou algum tempo absorto, como que a meditar e por fim atirou:
-Não. Nunca ouvi falar!
-Lamento. É uma terra de gente de bem.
-Sem dúvida! - Anuiu o sujeito feliz por constatar que o seu novo amigo não trazia espada à cintura.
-Desculpe, mas não pude deixar de o ouvir falar em generais...
Num discurso formal rapidamente recuperou o seu estilo de orador:
-Como disse, uma conspiração da pior espécie...
-Contra quem? - Indagou Pretoriu num tom fingido de inocência.
-Contra o imperador obviamente. Já toda a gente percebeu que o homem está louco....Querem o poder....Quem sabe, matarem o filho.
-Filho?
-O príncipe...
-Qual príncipe?
Ele olhou para Pretorius com um misto de indignação e surpresa:
-O príncipe de Orgutt. Claro não sois daqui! O imperador tem um filho herdeiro, mas dizem que não é lá grande coisa.
-Ah sim? Mas é deficiente?
Ele  ficou a escolher as palavras e pacientemente esclareceu:
-Não. Comenta-se apenas que é alheio ao seu povo. Demasiado amigo dos luxos do império. Ninguém o vê, ninguém sabe ao certo como é...Parece que tem nojo de nós.
O príncipe fez um esforço para digerir o ataque, solicitando também ele uma cerveja e sem encarar o seu interlocutor nos olhos, sondou:
-Nesse caso porque os generais o queriam matar?
O sujeito retomou o estado de ansiedade inicial:
-Pensais certamente que estou louco ou bêbado. Não vos censuro, mas sei bem o que vi!
Pela segunda vez nessa noite os olhos de Pretorius brilharam de curiosidade:
-Rogo-vos que me contais!
-Porque o faria? - Indagou o homem repentinamente defensivo.
-Porque adoro uma boa história e sou estrangeiro. Gostava de levar algo para contar aos meus entes queridos quando regressar.
O sujeito olhou em volta desconfiado e agarrando o braço do principe, convidou:
-Vamos até lá fora. Não posso falar aqui! Os homens do imperador podem ouvir.
Pretorius não sabia a quem ele se referia, mas não perdeu tempo. Atirou duas moedas de prata para o balcão, acompanhado de um :
-Pago uma rodada a esta gente!
E saiu atrás do seu novo amigo.
O sujeito alto saiu apressadamente, como se de certa forma não quisesse que Pretorius o seguisse e depois de dobrar a esquina, acelerou ainda mais o passo. Sem proferir qualquer palavra, o sujeito conduziu o príncipe bastantes metros, sempre olhando por cima do ombro até estacar diante de um poço:
-Não contei ao meu amigo aquilo que eu faço para ganhar a vida. - Informou o sujeito em voz baixa
-Não. Não me contou . - Pretorius agarrava disfarçadamente o cabo da sua adaga por baixo do manto, temendo o pior.
-Este é o meu poiso habitual de trabalho.- Apontou ele para o poço- Sou aguadeiro  e todos os dias venho aqui encher os baldes , qautro ou cinco vezes, para conseguir sustento.
-Ah! - Proferiu aliviado o príncipe largando o cabo da adaga.
-Agora peço-vos que olhei para a vossa frente. Dizei-me o que vossos olhos vêm?
O príncipe reconheceu de imediato a fachada do palacete de Vill:
-A casa do imperador? - Mentiu ele.
O sujeito riu durante algum tempo e recuperando o fôlego, elucidou:
-O imperador vive no castelo...Que ideia a vossa! Desculpai que vos diga, mas nada entendeis de Orgutt.
-Verdade meu amigo.- Assentiu Pretorius numa falsa modéstia.
-Ali vive um dos melhores e mais condecorados generais do império. Até hoje era uma honra para mim, estar aqui e por vezes o ver sair, mas agora tenho receio.
-Como assim?
-Hoje vi algo que não devia nem confidenciar à minha própria mãe. 
-Contai-me, por obséquio! Agora estou curioso.
-Prometeis nada contar?
-Obviamente meu amigo.
O aguadeiro sentou-se , como que saboreando ser o centro das atenções:
-Meu caro Rafin, hoje assisti à entrada apressada de um outro general, também ele condecorado nesta casa e não mais o vi sair.
-Então ainda lá está? Pode ter sido convidado a ...
Apressadamente ele riscou o chão com um pedaço de pau velho, alinhavando ideias:
-Sensivelmente uma hora depois, um dos  homens do palacete sai montado no cavalo do general com um fardo colocado entre o cavaleiro e a cabeça do cavalo. Não dei muita importância ao facto, pois cedo aprendi a não me meter na vida de quem quer que seja,- Disse ele numa falsa convicção- e tratei de encher os baldes e meter-me ao caminho. Mas o pior foi depois...
-Rogo-vos que tenhais paciência e que venha comigo.
Pretorius, completamente preso à narrativa não ousou contrariar o pedido do sujeito e seguia-o atento ao relato que fazia pelo caminho:
-Ao dar a minha volta, - Retomou ele contente por cativar a atenção total do seu ouvinte - Reparo inadvertidamente numas gotas de sangue...e mais à frente outras e mais outras e sigo o lastro, sem cuidar que fazia o mesmo caminho que o cavaleiro.
O príncipe fazia um esforço por descobrir as manchas que ele ia apontando na palidez da lua, até que cerca de dois quilómetros depois  parou.
Sem proferir qualquer palavra apontou para um declive e prontamente Pretorius avançou na direcção indicada encontrando um corpo embrulhado toscamente num lençol de boa qualidade. Sem perder tempo, retirou a adaga, rasgou o lençol e reconheceu a face sem vida de Brunnus.
-Pelos Deuses...Quem é ? - Fingiu o príncipe esforçando-se para se refazer do choque.
-O general visitante. Vamos embora, corremos perigo!
-E o cavaleiro?
-Não sei, eu...
De súbito o aguadeiro tombou primeiramente de joelhos, soltando um gemido curto e depois caiu de face no chão, resvalando pelo declive. Apavorado, o príncipe saltou para o lado instintivamente ouvindo o zumbido de uma flecha a passar perto de si:
-Ele está ali. - Bradou uma voz forte.
-Acho que lhe acertei.- Respondeu uma voz mais jovem.
Como um coelho a fugir de uma raposa, em quase plena escuridão, Pretorius saltou desordenadamente por entre a vegetação, na ânsia de fugir. Ouvia passos atrás de si e temia ser atingido pelas costas. 
Ele lembrava-se de ter visto umas árvores a caminho do declive e procurava na sombra o caminho para o abrigo dos seus troncos, contudo os passos atrás de si estavam próximos e ele não conseguia ser mais rápido. Se ao menos pudesse saber quantos eram!
O vento levantava-se repentinamente, complicando de certo modo o equilíbrio e o príncipe calculou que seria uma questão de tempo até ser capturado. Só havia uma solução, tirar partido do que Brunnus lhe ensinara. Instintivamente estacou, agarrou o punho da adaga em modo de defesa, com a lâmina paralela ao seu braço direito e correu na direcção dos seus perseguidores, esforçando a visão para tentar detectar os vultos na escuridão.
Mais depressa do que esperava, apercebeu-se do brilho fugaz de uma espada perante a palidez do luar , recuou dois passos, aninhou-se e esperou até que o homem se aproximasse o suficiente e então ergueu-se descrevendo com o braço direito um semi-círculo, atingindo a face do seu perseguidor. Em milésimos de segundo rodou o cabo da adaga na sua mão direita e aproveitando o factor surpresa, cravou a lâmina no coração, tapando com a mão esquerda a boca ao seu perseguidor. A presa virava caçador. Lentamente deixou-o cair no solo, recolheu a adaga, agarrou na espada do seu opositor e caminhou curvado tão silenciosamente como o piso o permitia, sempre de olhar atento a qualquer vulto que surgisse.
Desesperava contudo em tentar perceber onde o inimigo pudesse estar até que uma voz o guiou:
-Então? Haveis encontrado o pobre diabo? - Indagava a voz forte.
-Sim. - Respondeu ele contente por estar contra o vento.
-Trazei o corpo. Sabeis as nossas ordens!
-Sim. 
-E rápido antes que atraias outros curiosos. Já bastou teres sido visto a cavalo pelo metido do aguadeiro.
-Por certo...- Pretorius viu finalmente o vulto forte e alto do sujeito recortado sob o declive.
-O general avançará para o castelo ao nascer do dia. Temos de os despachar senão...
Calculando a distância do declive, Pretorius baixou o capuz e principiou a correr na direcção do forte soldado, até ficar perigosamente próximo e num tom autoritário, bradou erguendo a espada:
-Pobre canalha que atentais contra a vida do vosso príncipe!
O sujeito quedou-se de espanto, diante da face do seu soberano e não ofereceu qualquer resistência quando a lâmina o decapitou.
Sem qualquer rancor e explodindo de raiva, o príncipe recuperou o corpo de Brunnus e em fúria  pontapeou a cabeça do forte soldado  para o declive, repetindo a operação com o resto do corpo. Procurou os cavalos dos soldados, atando um à árvore para que pudesse ser facilmente descoberto aos primeiros raios de sol, colocou o cadáver do General sobre o segundo cavalo e galopou até sem destino, indeciso sobre o rumo a tomar. 
Depois do que vira e ouvira, percebera que o império estava moribundo e Orgutt teria de mudar!


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