domingo, 15 de maio de 2016

A Saga de Arkhan - Livro 2 - Ischtfall - Capítulo 2




Tade Styka (1889 - 1954)


A dor é o terço dos homens,
uma oração moída conta a conta,
fervorosamente murmurada,
cheia de culpa e sofrimento.

Inês Dunas: Oração
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LATVÉRIA

De braços cruzados sob o pequeno parapeito de pedra, olhava embora sem grande atenção para as muralhas, indiferente à obra em questão. Para o seu marido e mesmo para o seu povo, as muralhas constituíam um motivo de orgulho, mas para ela não era mais que a fronteira da sua liberdade. Na verdade era um aviso erigido em pedra forte e robusta, caso ela estivesse desatenta, de que por mais que ela o desejasse dificilmente ultrapassaria essa fronteira.
Num gesto de grande desconforto, afastou as pontas do cabelo loiro, outrora sempre bem penteado e mordicou a ponta das unhas, como se fossem um aperitivo:
-Contemplais a nossa obra ? - Inquiria a aia desconfiada.
-A obra? Não, estava apenas a reparar que não tem chovido.- Respondeu com receio que lhe adivinhassem os pensamentos.
-Para que quereis a chuva, majestade?
-Não quero...Na verdade é-me indiferente, conquanto não chova neste quarto.
A aia soltou um suspiro:
-Pensais em quem Majestade?
-Não em quem, mas no quê...Estou farta!
Os olhos perderam-se no recorte da imensidão da montanha bem para lá dos limites do reino.
A aia, assustada com a frase proferida da boca da rainha, tentou suavizar o desabafo:
-Compreendo majestade. Estais há demasiado tempo doente...
-Doente não. Louca.
-Que dizeis majestade? Rogo-vos que não faleis assim. Bem sabeis que o Rei pode ouvir.
Latvéria, a rainha de ischtfall sorriu amargamente, sem tirar os olhos do vulto montanhoso:
-Como devem ser felizes...
-Quem, majestade? - Indagou a nervosa aia perdida na conversa.
-O Povo da Montanha! Sem rei, sem regras idiotas, sem ....
-Majestade, são um bárbaros!
-Duvido! Para estarem tão longe desta podridão devem ser bem cultos e inteligentes.
O som de passos no soalho de mármore, humedeceu a aia e os três sons socos na porta , levaram-na para o seu canto, de modo a fingir-se ocupada:
-Entre! - Gritou Latvéria tentando manter alguma aparência nobre.
-Majestade, as Mocidas chegaram. - Avisou a segunda-aia, bastante nova ainda.
-Perfeito. levai-me para a Ala Este do palácio, estou curiosa em as vêr.
Como três pássaros,caminharam pelos estreitos corredores,  em pequenos passos saltitantes indiferentes aos guardas de honra que se mantinham imóveis, habituados a tal peregrinação semestral e sentaram-se na nave lateral, ocultas pelas traves grossas de madeira e em silêncio contemplavam o desfile de jovens vindas de quase toda a Arkhan.
As jovens ninfas, virgens castas rumavam esporádicamente ao palácio de Ischtfall com o secreto desejo de serem as escolhidas para o harém majestoso do rei Leopoldo II e com sorte uma delas seria barriga de aluguer, ou mocida como lhes chamavam, carregando no ventre o futuro herdeiro ao trono e se porventura o nascimento fosse bem sucedido e o bebé fosse um rapaz saudável, o rei a cobriria de regalias e dinheiro permitindo a sua continuidade no palácio, embora sem contacto directo com o futuro herdeiro do reino.
Pelo menos assim o ordenava o Édito redigido pelo pulso do monarca e autenticado com  a esfera das três espadas em fundo azul, conferindo-lhe o carácter de obrigatoriedade de lei.
Latvéria, a bela e jovem loira, sendo da alta nobreza de Ischtfall  era apenas uma das visitas regulares do palácio, nas festas e outros eventos realizados pelo rei Leopoldo I.
Após o repentino falecimento do rei, o jovem principe Americus Leopoldo Gustafson, propôs apressadamente ao pai de Latvéria a mão da jovem em casamento e subiu ao trono já casado, assumindo o nome de Leopoldo II.
De repente a jovem Latvéria que nunca beijara ninguém, que nunca partilhara qualquer conversa intima com Leopoldo II, via-se assim entregue a uma cama, a um homem, a obrigações e a uma tensa servilidade  na cama que ela repugnava e odiava. Dia após dia, toque após toque, penetração após penetração, a vergonha, o embaraço e algum ódio, derivou rapidamente num mal-estar tão agudo que Erica Latvéria Dabrun se viu acamada, tomada de febres altas e agudas e para sempre privada do seu sorriso outrora contagiante como um raio de sol em pleno Verão.
Desesperadamente o rei chamou ao palácio os melhores curandeiros e médicos de Arkhan e nenhum deles fora capaz de um diagnóstico ou de tão somente restituir alguma cor ou alegria à face pálida da rainha.
Em desespero de causa e temendo ser algo contagioso, que de certa forma colocasse a sua saúde em causa e simultaneamente a liderança do reino, Leopoldo II optou por enviar a rainha para o extremo do palácio, onde mandou montar um quarto isolado, para que,segundo afirmara em tom cuidadoso, ela pudesse descansar e recuperar forças na companhia das suas amas, ficando ele a salvo da possibilidade da rainha o contagiar.
Mas o rei , sempre atormentado pela partida célere de seu pai, temia que ela pudesse falecer repentinamente e deixar o trono sem herdeiro. Com a preocupação de assegurar a necessidade de linhagem e sabendo que provavelmente não poderia contar com a rainha Latvéria, numa escura e solitária  noite em que o frio agreste do Vento Norte assolava o palácio, com a brisa gelada a entrar sorrateiramente pelas frinchas das portadas, chocalhando os ossos do soberano de frio, Leopoldo II sentou-se à mesinha no seu quarto e prontamente principiou a escrever o èdito de Mocida, estipulando basicamente que não mais as suas noites fossem desertas de prazer ou companhia.
Nos seus vinte e três anos, a agora rainha via-se desprovida de qualquer afecto pelo seu corpo,isolando-se numa redoma de gelo, sem qualquer orgulho pelos seus atríbutos físicos e sem qualquer confidente que lhe pudesse amenizar o desassossego da sua alma. Invariávelmente, dia após dia, desde que tinha ascendido ao trono, a rainha definhava na sua elegância e charme, permitindo que a sua mente abrisse portas para a obscura demência que o isolamento da torre lhe permitia.
Durante os primeiros tempos, isolada na sua parte do palácio, Latvéria desejava a morte em serenos sussurros, tentou inclusivamente formular pedidos suplicantes às amas que lhe fizessem chegar alguma espécie de veneno, mas nessas horas a voz desaparecia, com receio do que Leopoldo II pudesse fazer à sua família e a reputação que tal acto traria, manchando o clã Dabrun.
Pouco a pouco, assim muito gradualmente a rainha tornou-se prisioneira dos seus medos e dos seus traumas. Os dias eram sempre iguais, as ausências de rotinas cada vez mais evidentes até que deixou de sair do seu quarto, remetendo-se ao leito da cama, como quem aguarda a morte.
Gradualmente viu-se alvo de estudo dos doutorados, feiticeiros ou auto-proclamados mágicos, mas nenhum deles poderia curar o que não tem cura. Latvéria era um pássaro que tinha sido aprisionado na flor da vida e agora...Agora já não queria mais voar.
Não ciente da sua autocomiseração a rainha deixava-se embalar em longas horas de ócio, indiferente à contagem das horas e dos dias. Se chovia, se fazia frio ou se caía neve, era para ela absolutamente igual. Entregara-se ao leito da mesma forma que se entregara a Leopoldo II e habituara-se a essa condição servil de se resignar à sua sorte, aos caprichos de outros.
Evitando calcar as bordas do seu vestido amarelo gasto pelas horas deitada sobre ele, Latvéria recolheu de novo ao seu quarto, deixando as aias do lado de fora. Não sabia porque se submetia à humilhação de ver as candidatas, ciente de que isso só acarretava pena e piedade pela sua pessoa, perante as suas aias, mas no fundo algo lhe dizia que um dia tudo acabaria e ela poderia voltar a ser livre e dona de si.





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