segunda-feira, 23 de maio de 2016

Poderosa Perversão - Capítulo 1





Há sempre um tempo, dentro do nosso tempo,
em que me sinto sem ponteiros.
Os minutos são lutos que nos tocam e sacodem
enquanto nos explodem os sonhos nas mãos...

Inês Dunas : Marcha lenta
http://librisscriptaest.blogspot.pt/2016/05/marcha-lenta.html


Queda Livre


O vento acossava o seu magro corpo, levantando-lhe  as pontas do vestido amarelo, numa luta silenciosa e contudo mortal, obrigando-a a medir bem os pequenos passos na curta saliência no topo do alto edifício. Não obstante a adversidade temporal, o seu equilíbrio era perfeito, talvez porque a sensação de perigo eminente a forçava seguir concentrada e focada na sua insólita caminhada.
Ao fundo, bem ao fundo, carros e pessoas circulavam alheados aos  passos de bailarina que ela iniciara minutos antes. Os pés descalços saltitantes sob as arestas cortantes avançavam obstinados até à esquina, onde ela contemplaria a construção humana uma última vez, antes de mergulhar no vácuo da descida repentina até ao asfalto.
Parou no ponto mais íngreme não por hesitação ou reflexão, mas para se preparar e sorridente, soltou o longo cabelo negro, como quem se livra das últimas amarras que a prendem à vida e como Cristo Redentor, abriu os braços e deixou-se cair, sentindo...
-Chega! - Bradou o homem de meia idade incrédulo com o que ouvia.
-Mas não acabei.
-Nem acaba! Arre diabo para esse seu conto. - Sentenciou ele ainda incrédulo.
-Mas professor, eu...- A jovem torcia nervosamente as folhas de papel nas mãos frias.
-Creio ter sido bem explícito.
O pesado sujeito, agastado com a sua aluna , virou-lhe as costas e enfrentou os divertidos alunos que ainda riam:
-Ouçam bem - Pronunciava ele de forma bem audível para a audiência- quando eu vos pedi um conto sobre Liberdade, referia-me como é óbvio às várias formas de manifestação da mesma presentes no nosso dia-a-dia. 
-E foi isso que eu fiz!- Desafiou ela de rosto fechado e olhar de raiva.
O comentário foi prontamente ignorado pelo professor que cruzando as mãos suadas de tensão atrás das costas, continuou:
- Isto que a menina Sara Ferraz trouxe aqui hoje... Esta agressão sonora não é...Repito, não é sobre Liberdade mas sim sobre suicídio e só por isso ou precisamente por isso aviso que a partir de agora ficam suspensas as leituras em voz alta. Eu irei primeiro ler e se por acaso algum engraçadinho distorcer o meu tema, fiquem já avisados que irão ter zero...Zero vírgula zero. Entendido?
- Não escrevi sobre suicídio! Não como tema, mas sim sobre a liberdade do que a minha personagem sente ao saltar...
-Não seja hipócrita menina. O que tentou fazer com esse conto foi perverter aquilo que eu solicitei. 
O homem calvo e de meia-idade avançou repentinamente para a aluna, retirando-lhe com um gesto brusco as folhas da mão.
-Vai ter zero e nada mais que zero e fique agradecida de eu não levar isto a Conselho Directivo ouviu?
.-Não pode fazer isso....
-Ai não? Pois posso e vou fazê-lo!
Sara que até então se tinha mantido alheada dos risos cínicos e algo hilariantes dos colegas, não aguentou a humilhação no modo como o professor continuou a enxovalhar o seu conto. O problema dela residia precisamente aí. Não estava de todo interessada no que o sujeito pudesse proferir sobre si, mas já em relação ao conto não tolerava que ele o reduzisse a qualquer loucura de adolescente. Segurando as lágrimas, encarou a autoridade escolar:
-Professor, não vou debater consigo o tema liberdade, nem sequer apresentar o meu ponto de vista, pois já percebi que é demasiado quadrado para isso. Apenas quero o meu conto de volta . 
As folhas balançaram expectantes nas mãos grossas e peludas do professor, como se de certa forma pretendesse chamar a atenção da aluna ou quem sabe dar a esta uma última oportunidade de as ver ainda intactas e repentinamente num culminar de fúria desafiadora rasgou-as várias vezes perante o olhar atónito de Sara e sem contemplação atirou-as para o chão, para perto da biqueira das botas de biqueira de aço da jovem.
A jovem engoliu em seco, reuniu em si mesma todas as forças que conseguiu encontrar e sem soltar uma lágrima, dirigiu-se até ao seu lugar percebendo-se gradualmente do aumento dos risos e sentindo sobre si o olhar divertido dos colegas.
Sem proferir qualquer palavra, aproximou-se da sua secretária, fechou um caderno de capa preta, pegou no seu lápis Staedler número 2 e preparou-se para abandonar a sala de aula. 
Não tinha sido um ano nada fácil para a jovem Sara que desde Janeiro perdera o pai por cancro, repentino ou galopante como alguém lhe explicara no hospital. Três meses depois a mãe perde o emprego na fábrica de conservas e o seu namorado desde os quinze anos resolve acabar com ela por sms. A todas as contrariedades a jovem disse presente e mentalizou-se que seria preciso lutar, estar atenta e acima de tudo, seguir o seu caminho. Como Fénix ela renasceu após o luto e tornou-se uma pessoa diferente. De pele clara e sorriso inocente, transformou-se em guerreira urbana, de piercings no nariz, casaco de cabedal e cabelo rapado de lado.
A ira e a revolta cresciam serenamente dentro dela, podendo aqui e ali, consoante os berros da mãe ou a "boca" de um qualquer anormalóide a fazer explodir. E ela explodia sempre na devida medida da humilhação que sofria.
O professor Jaime, sentado à  secretária viu-a caminhar por entre as mesas, de passo pesado e rosto fechado e secretamente saboreou todos os momentos da sua vitória. Desde Outubro que sara o enervava e chegando agora dezembro era uma boa forma de a forçar a não voltar em janeiro.
A jovem aproximou-se da mesa do professor , circundou-a e pousou o caderno no tampo, enquanto resumiu:
-Não vou sair sem lhe deixar ficar algo com que se entretenha. A liberdade, na minha opinião, é apenas e tão só um oceano de coisas boas. Coisas essas que jamais perceberá, como também não entenderá nunca o livre-arbítrio. Sabe professor, a liberdade é a capacidade de podermos fazer algo que tem e deve ser feito, sem que alguém nos impeça.
-Menina Sara eu sinceramente creio que a menina não percebe que não há argumento possível para o que acabou de mostrar aqui. Teimando nesse assunto, das duas uma ou é de feitio difícil ou é burra e ambos sabemos que o seu feitio nem é nada difícil.
A jovem esboçou um sorriso forçado e parecendo não reparar no insulto, prosseguiu:
-Pois como lhe disse e uma vez que lamentavelmente a sua censura fascista impediu que tivesse algo meu para meditar, deixo ficar aqui uma prova do livre-arbitrio. 
Num gesto ágil e com alguma destreza, ela cravou o lápis na mão do professor como se fosse uma faca, constatando então para seu prazer que os humilhantes risos foram substituídos pelo eco de gritos de dor do professor.
Sem contemplar a turma, agarrou no caderno e saiu tranquilamente pela porta da sala em direcção ao pouco iluminado corredor da escola, indiferente à porta que se abria atrás de si e aos passos ritmados que a perseguiam. Sem lágrimas ela sorriu.

1 comentário: