quinta-feira, 9 de junho de 2016

Poderosa Perversão - Capítulo 2




Deus criou-nos num dia de tédio.
Nós criamo-lo num dia de raiva.
Demos-lhe palavra e um propósito,
Demos-lhe moral e uma consciência
e chamamos à nossa vingança, justiça.

Inês Dunas: ADeus
http://librisscriptaest.blogspot.pt/2015/11/adeus.html



AH CANALHA


Os pés pisavam com relativa força o chão sujo do corredor, num ritmo quase ensaiado, ressoando pela escola, como se fossem uns dez homens a marchar, até ela se aproximar da porta principal onde alguns alunos encostavam-se  à parede permitindo a passagem da colega que, como se fosse uma locomotiva desgovernada, avançava obstinadamente até à maçaneta da porta, enquanto  segurava com os dentes o lábio inferior  numa falsa dentada, resolvida a não chorar.
Atrás dela porém outros passos a seguiam, numa perseguição desenfreada, por um vulto quase dobrado e sem ar nos pulmões, decidido a impedir que ela atingisse a porta de saída.
Sem uma palavra, sem qualquer aviso prévio , o professor a quem ela minutos antes havia espetado um lápis na mão, esticou a mão são, fechando-a num punho ostensivo e atingiu-a nas costas, num soco rápido e eficiente que a fez gemer de dor e cair de joelhos.
Sem saber ao certo o que se passara ou o que a atingira Sara procurava recuperar da dor súbita nas costas. Os pulmões pareciam querer estourar,  a cabeça latejava nas fontes, e um suor repentino invadiu-lhe a face. Não conseguia reagir, não se conseguia erguer e peremptoriamente cerrou os punhos procurando em si a força necessária para se erguer. Não podia ficar ali, assim...
Perto dela o professor Jorge de cabeça perdida e veias salientes no pescoço, explodia numa fúria verbal:
-Julgavas que podias ir embora como se nada fosse, cabra? - Como não obteve resposta, prosseguiu o seu monólogo de raiva- Tens de perder essa mania que és mais inteligente, que és melhor que as outras...Pois não és e ficas a saber que vais pagar bem caro. Estou farto de ti entendes?
Sem se conter e perante a impassividade dos alunos que estavam como que colados à parede, içou uma perna, num chuto forte com o pé direito, apontado ao queixo da jovem, que adivinhando o gesto, içou os braços cruzando-os em forma de X, recebendo neles a violência do golpe.
Antes mesmo que alguém pudesse fazer algo ou intervir, a força do impacto projectou-a para trás no momento em que se defendia, atravessando com as costas o vidro da porta principal, tombando sem forças já no exterior do edifício, cercada e golpeada por uma chuva de vidros que tombavam sobre o seu corpo.
Só então, como se tivesse sido atingido por um raio, o professor se deu conta do local onde se encontrava e dos olhares incrédulos que sobre ele caíam. Para de seguida  receber um soco no queixo de um jovem que entretanto se aproximava do local após ter recolhido as folhas do trabalho de Sara.
Atirado contra a parede, ainda mal refeito do ataque Jorge mirou o seu recente opositor numa ira efervescente:
-Estás feito comigo palhaço ! - Gritou o jovem loiro de dedo no ar espetado.
-Tu é que vais estar feito comigo! Segurança...Chamem o segurança! - Implorou o professor no momento em que o vigia da escola e a presidente do Conselho Executivo da escola chegavam ao local, alertados pela gritaria e pelo barulho do vidro a partir.
Prontamente o vigia/segurança avançou para a jovem prostrada no solo, inanimada e ensanguentada, ordenou em voz alta que alguém chamasse uma ambulância e a polícia, enquanto que a presidente olhava para o professor sem saber ao certo o que fazer.
O jovem loiro, que entretanto se ajoelhara perto da cabeça de Sara, despiu o casaco de ganga, dobrou-o e usou-o como almofada enquanto que ternamente ia catando os pedaços de vidro minúsculos do cabelo dela, desejoso contudo de lhe limpar a cara, lhe limpar o sangue que ia surgindo e lhe poder de certa forma devolver o rosto que aprendera em segredo a admirar.
A sensação que a consumiu quando acordou foi de quem estava a morrer afogada. Aspirou o ar o mais que pode, tossiu fortemente e tentou cuspir os pedaços de vidros e o sangue que lhe invadia os cantos da boca. Não recuperou logo a localização espacio-temporal, ainda aturdida que estava do que lhe havia sucedido, e por segundos contemplou a face do jovem loiro diante dela. Num esgar de dor, estendeu-lhe a mão e assim que ele fechou a sua sobre a dela,  puxou-o segredando-lhe:
-Voltas a tocar-me e arranco todos os dedos da tua mão à dentada!
-Bolas Sara! Não tens nem noção do que sucedeu pois não? Tu foste projectada...
-Vais tirar a mão ou não? - Inquiriu ela num tom de desprezo.
Rafael consentiu com um aceno de cabeça e esboçando um ténue sorriso de derrota. Não valia de facto muito a pena, conforme a melhor amiga dele lha havia adiantado aquando da confissão tida em pé de orelha à saída da escola na semana passada. Sara era uma miúda que simplesmente não batia bem da cabeça. Uma fonte de problemas e sobretudo incapaz de amar alguém. E que sim, garantia ela com a cabeça no ombro do jovem loiro, que sendo ela uma gaja era a pessoa certa para aconselhar o tímido rapaz acerca da Sara. Era no entanto verdade, embora Rafael não soubesse que as duas não eram propriamente muito amigas e valha a verdade, nem ela tinha qualquer laço efectivo de amizade com Sara. Mas claro que para estar perto de Rafael e sonhar com o dia em que ele perdesse a timidez e avançasse na amizade, ela teria forçosamente de o manter perto e livre de paixonetas que pudessem de alguma forma colocar em perigo a chance de um dia o beijar.
Mais rápido que o previsto a ambulância invadia sonoramente o recinto escolar, seguida por uma viatura policial depois de dois auxiliares terem dilingentemente aberto o portão de acesso ao parque de entrada, concentrando  todos os olhares presentes, 
Rafael sacudia as mãos, observando em silêncio os bombeiros a colocarem Sara na maca, a levarem-na para ambulância, enquanto dois agentes fardados entravam no recinto, nos seus uniformes azuis, não escapando ao olhar dele que serenamente, como um lobo evitando o ataque certo, afastou-se prontamente do local onde Sara caíra, não esquecendo o soco que dera intempestivamente na face do professor e antevendo alguns problemas com as autoridades, aproximou-se em passinhos de lã, aguardando o timing correcto para a fuga perfeita. Tudo teria de correr como ele agora magicava. Ficou ali, como um sombra, ou melhor como se fosse invisível, esforçando-se ora por não ser engolido pela agitação dos mirones que cercava a ambulância, ora por não ser avistado pela autoridade  e então ouviu o sinal:
-Alguém próximo para acompanhar esta sinistrada ao hospital?
-Eu vou. - Avançou ele destemido.
- É da família? - Inquiriu o bombeiro de bigode farto.
Pela cabeça do jovem passou a frase, "quase marido" mas vendo o olhar nervoso com que a jovem o fuzilava deitada na maca, retorquiu apenas:
-Ainda não! - E avançou obstinadamente para a ambulância.
O amor, como ele viria a descobrir é uma formula quase cientifica de suicido assistido da razão pura, que congela o raciocínio e entala ad eternum qualquer chance de ser racionalmente Homem. Mas seria o aliado principal na juventude de uma sede de justiça que agora trespassava o pensamento do jovem assim que a porta da ambulância se fechou. Antes enfrentar a raiva não dissimulada de Sara, a ter de explicar a agentes da polícia que apenas reagiu a uma selvajaria inexplicável de alguém que devia ser um exemplo.
Mas o mais certo, pensava ele enquanto ela observava atentamente os preparativos da bombeira a bordo da viatura, seria a total ausência de castigo para o professor e o dobro da pena para os jovens.
Fosse como fosse, na mente dele já estava perfeitamente gravada a sentença final....Nada seria como dantes!
Sara vendo que a bombeira se sentara atrás de si a uma relativa distância, encarou Rafael desta vez com um olhar de compreensão e disparou serenamente:
-Agora conta-me tudo!










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