segunda-feira, 20 de junho de 2016

Poderosa Perversão - Capítulo 3





"Aprendi que a vida é feita de pequenos detalhes, pequenas sutilezas
Aprendi que numa queda de braço, nem sempre o vencedor é quem ganha
Aprendi que pessoas especiais, te fazem especiais."

Patrícia Tieko



GATO ESCONDIDO COM RABO DE FORA


Na décima sétima esquadra, a mais importante da cidade no que ao volume de trabalho diz respeito, o ambiente era frenético, como regra geral o é sempre a um dia de semana pela hora de almoço. No entanto só era frenético para os que trabalhavam dentro das pesadas portas de vidro, pois quem visse pela entrada e contemplasse a recepção só via uma aparente calmaria.
Sentado numa cadeira com rodinhas, das mais baratas o inspector olhava pela sétima vez para a parede do gabinete distraidamente, tentando de certa forma digerir toda aquela confusão que definitivamente lhe aterrara no colo. E pela sétima vez não conseguia perceber como uma simples composição ou reflexão sobre  a liberdade acabara com uma jovem estudante hospitalizada, uma porta de vidro vandalizada  e uma mão de um professor  magoada por um lápis, aparentemente cravada como se de uma faca se tratasse.
Cardoso passeava os dedos pelo fino bigode, aparentemente interessado na narração dos factos pelo professor, mas a figura suada, histérica e algo colérica do sujeito não ajudava à sua concentração.
Recorrendo à sua experiência de polícia de interrogatório havia-o interpelado nas primeiras vezes, tinha inclusivamente interrompido de propósito e voltado a perguntar factos que ele narrara no início, ansioso de encontrar qualquer falha no discurso narrativo que lhe possibilitasse distorcer toda aquela história aparentemente simples e inofensiva:
-Mas porque carga de água ela lhe espetou o lápis ? - Inquiriu o inspector já visivelmente irritado.
-Porque ela é louca. Só pode ser louca....
-E no entanto, foi o senhor que a perseguiu pelo corredor.
-Obviamente! Mas não para a agredir...- Apressou-se o homem a esclarecer, mentindo pela primeira vez.
-Ah não? Mas ainda há minutos disse que não admitiria ficar sem resposta.
-Mas...Pois, mas era mesmo para falar.
-Estou a ver. E os pontapés?
-Tal como disse anteriormente. Legítima defesa. Eu agarrei-lhe no ombro e ela "virou-se" a mim.
Cardoso sorriu pela primeira vez nesses quarenta e cinco minutos e calmamente sentou-se sobre a mesa perto do professor, balançando o pé direito num gesto divertido:
-Sabe que temos testemunhas que viram tudo certo?
-Duvido. - Discordou ele peremptoriamente.
-Porque duvida?
-Porque creio que se está a referir a alunos como ela....Aliás, podem muito bem ter encenado tudo isto.
-Alunos que adivinhariam que o senhor ia sair disparado pela porta atrás dela!
-Perfeitamente. - O professor parou uns segundos e levou repentinamente a mão ao seu queixo- Isto explica porque fui agredido.
-Já la vamos. - Cardoso voltava a sentir a testa a latejar de nervos.
-Pois iremos, que esse verme não pode ficar impune.
-Certamente que não deixaremos ninguém impune...- O inspector ergueu-se rapidamente como se se tivesse recordado de algo urgente e voltou à carga Agora a minha única dúvida reside na composição,
-Não chamaria àquele mísero texto de composição.
-Então como o catalogaria?
-Lixo....
-Aguardamos para ver esses originais com os nossos próprios olhos, se bem que isso seja indiferente. Houve de facto e segundo o que conta uma agressão da jovem à sua pessoa e houve, a acreditar em testemunhas uma agressão sua à jovem- Legítima defesa ou não a nós só nos importa a transgressão, o resto é com os tribunais.
Uma senhora de meia idade abriu delicadamente a porta , fazendo um sinal com os dedos para que o inspector fosse ter com ela:
-Um momento que já volto. - O inspector olhou de soslaio para o jovem agente sentado perto de si.- Pedro, faz o favor de dar gelo ao senhor ou ele vai ficar com queixo duplo.
Não aguardou pela resposta dele e saiu, explodindo de seguida já cá fora:
-Porque raio é que me mandaste isto para cima de mim? 
-Porque vou querer que acompanhes este caso. - Respondeu ela serenamente.
Homens fardados deambulavam pelo estreito corredor, enquanto ele tentava digerir o que a sua superiora acabara de proferir:
-Acompanhar? Que diabos, não podes estar a falar a sério! Eu trato de homicídios, acaso te tenhas esquecido e não disto....Porque não o mandamos ao APAV ou algo assim.
Sofia Vergara ignorou a opinião dele e de um modo totalmente autoritário voltou-lhe as costas, conduzindo-o quase por encanto até ao seu minúsculo gabinete, onde aguardou que ele fechasse a porta, sentou-se muito devagar e sem tirar o olhar do magro inspector, avançou num timbre de voz seguro:
-Diz-me o que achas de toda esta história?
-O que acho? Sei lá o que acho....Isto é um arrufo, umas agressões, alguém perdeu a cabeça, alguém respondeu, outro alguém perdeu também a cabeça...Duas horas e o relatório está feito, o caso fechado e arrumado. Não percebo o que quer que faça com isto.
-O teu trabalho!
Cardoso ia responder, mas engoliu em seco, cruzando as mãos atrás das costas. Já tivera os seus momentos momentos com Sofia, quando respondera sem pensar e depois de duas chamadas de atenção ele percebeu que ela era mais que uma cara bonita:
-Ok. Já percebi....Aqui vai: No meu entender a miúda escrevinhou qualquer coisa agressiva, o chalupa que está ali sentado não gostou e disse algo e ela...Bolas, não percebo o lápis. Ok, percebo a agressão em si, mas mostra premeditação...Seja como for, o gajo perseguiu-a e deu-lhe uns biqueiros e ela caiu e pronto foi isto.
-Confuso!
-Ah sim e pelos vistos surgiu outro puto que se atirou ao prof.
-Que se chama?
-Pois. Ainda não o identificamos mas se conheço os estudantes, por esta altura deve estar no Youtube ou no facebook.
Sofia abanou negativamente a cabeça, passou a mão pelo cabelo castanho bem arranjado e forçou-se a uma pausa, como se precisasse de organizar ideias ou pensamentos. Cardoso era o seu melhor activo, embora o menos experiente. Era acima de tudo uma aposta pessoal sua, contra os preferidos da Administração Regional e promovera-o não pelo seu currículo ou "jeito para a coisa" , mas porque acreditava que a paixão e a vontade com que se entregava a um caso era arrasadora e condutora de excelentes resultados. Ela sabia que se tivesse o inspector motivado, ele viraria todas as pedras da calçada do avesso até descobrir o que procurava. Sofia subira a pulso num emprego de homens, aprendera a ser fria quando eles estão "quentes" e aprendera a ser ouvida, quando eles esperam gritos. Assim pausadamente esclareceu:
-Cardoso, a razão pela qual eu pedi que este caso te fosse entregue, prende-se com a necessidade de ter a certeza que te empenharás a cem por cento. Os dois sabemos que aqui há algo que não bate certo e tu não estás a ter a atitude certa.
-Como assim? - Retorquiu o matulão de cabelos pretos, nervoso pelo seu trabalho estar a ser posto em causa.
-Quero que trates disto com toda a tua paixão.
-Chefe! Por amor de Deus, este caso não tem nada. Absolutamente nada de interesse para mim...
-Porque não estás a ter a atitude certa!
-Que diabos....Que atitude queria que tivesse? Uma adolescente e um professor quase reformado....
-É simples. - Anunciou ela erguendo-se da cadeira apoiada nas palmas das mãos- Tudo o que tens a fazer é imaginar!
-Imaginar? - Cardoso já suava, fruto da força que fazia para não explodir numa chuvada de calão.
-Imaginar que se ao invés de ela lhe ter espetado o lápis na mão, o tivesse espetado num sítio mortal. Ou imaginar que ela tinha morrido após atravessar o vidro.
Cardoso permaneceu uns segundos estático, de seguida coçou o bigode e arregalando os olhos, consentiu:
-Estou a ver! Isso sim, era homicídio. Mas nem ele morreu nem a miúda....
-Mas o professor não sabe.
-Que diabo....E que quer que faça quanto a isso?
-Que trates o caso com a mesma paixão que tratarias se ela tivesse morrido.
-Mas então vou apertar o sacana e detê-lo com que acusação?
-Ele sairá em liberdade total, com a ideia que ela irá ser acusada.
-Agora não percebi....- Retorquiu ele com um aspecto confuso.
Sofia estendeu-lhe umas folhas A4 impressas no computador e aguardou que ele as lesse, então resumiu:
-A única coisa palpável que este caso nos trouxe para já é isto. O professor já consta da nossa base de dados, embora já há alguns anos que tenha parecido assentar.
-Ui, três vezes suspeito de abuso e violação de menores?
-Correcto. 
-Uma delas foi espancada até à morte?
-Exacto....Percebes agora porque te atirei com este caso?
-Sim. Percebo!
-Deixa o homem ir convencido que não sabemos de nada e segue este caso.
Cardoso coçou a cabeça pensativamente,devolvendo as folhas à sua superiora e informou à laia de despedida:
-Despacho o velho e vou para o Hospital.
-Presta atenção aos detalhes e tem cuidado com ela. Algo me diz que aqui há qualquer coisa perversa escondida.

1 comentário:

  1. A Sofia Vergara... LOL
    Que estranho caso afinal existirá por trás de atitudes coléricas tão inesperadas?...
    Espero e leio mais um pouco!

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