sexta-feira, 12 de agosto de 2016

A Saga de Arkhan - Livro 2 - Ischtfall - Capítulo 8





Quero ter o mesmo sorriso, mas marcado pela vida que vivi,
pela sabedoria que o tempo me trouxe,
pela tatuagem de cada dia!
Porque estar viva é mudar sempre
e eu nunca ouvi o riso das pedras…

Inês Dunas: EnvelheSer

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POR MATUKA É HORA DE AGIR!



Os finos e ténues raios de luz solar irrompiam a medo pela curta abertura do postigo, numa penumbra sinistra aumentando ainda mais a sensação que ela tinha de clausura.
Contudo de costas voltadas para o postigo Latvéria permanecia imóvel, sentada na borda da cama, parecendo aguardar algo ou alguém que nunca viria. As feições do rosto eram de pedra e o cabelo desleixado e maltratado ofereciam a tal senhora um aspecto grotesco e insano.
Quisera ela ser cadáver, pedia ela em segredo às sombras que com ela permaneciam no quarto que o coração deixasse de bater, que cessasse a sua actividade e que a deixasse petrificada, como estátua, para que todos assistissem à sua queda final. Mas o coração não parava, os dias não paravam de surgir a um ritmo certo e se havia vida lá fora, dentro daquele quarto tudo morria a cada segundo que passava.
A enfermidade de Latvéria era ainda desconhecida de todos, inclusivé dela mesma. Não se poderia tratar o que nãos e via, avisava o médico do reino. Talvez seja do ar gélido da Montanha que se abate no Inverno sobre a Montanha e que por qualquer razão afectara a rainha, sugeriu um especialista de Borren. Mas a rainha sabia que não era nada disso. Ela morrera, vítima de abandono dos seus irmãos nobres, do seu marido e sobretudo de si mesma. Era um pássaro enjaulado sem poder voar. Podiam-lhe mostrar o sol e o mundo, mas não a deixavam sair e cheirar e correr e saltar...Nada. Rainha no seu palácio e no entanto cativa na sua própria solidão.  Até as rondas das serviçais reduziam de dia para dia, como se não houvesse naquele quarto nada mais de interessante para ver. Latvéria sabia que era motivo de falatório pelo reino e aprendera a viver com esse desconforto, no fundo uma ferida não exposta, escondida mas que não doendo, mói ao pensar nela e prática como ela sempre tinha sido até casar, optou por ignorar a dor, convivendo com ela, serenando-a e adormecendo-a no seu íntimo, mas evitando voltar a esse assunto para não a despertar.
No início, aquando da mudança para aquele quarto, a rainha sentia-se grata por a deixarem em paz, por a "esconderem" de todos, mas depois vieram os médicos, curandeiros e toda uma estirpe de sujeitos que julgavam ter resposta para tudo e nada entendiam de um corpo sem alma, vazada ao limite pelas correntes de um casamento com quem não amava e acima de tudo, humilhada pela decisão do harém de jovens que Leopoldo II resolvera instituir.
Tinha sido demais e sem reagir começou a ver a sua família a afastar-se. As visitas do pai e mãe tornaram-se cada vez mais raras, não obstante ela saber que Leopoldo II tinha mantido a parte do seu acordo nupcial, ao permitir que os Nobres e em especial a sua família tivesse acesso ao palácio, bem como uma sala onde os nobres pudessem conviver. Mas a ela nunca a vieram ver, pensou ela sintetizando a ideia com um esgar de desprezo nos lábios.
Foi pois quase sem reacção ou sobressalto quando sentiu a porta do quarto abrir e ouviu distraidamente os passos inseguros e receosos da visitante. Sem se voltar ou encarar a visita, Latvéria proferiu num tom monocórdico:
-Não vos chamei e não preciso de nada.
-Perdão majestade. Entrei sem me haver chamado!
Latvéria não reconheceu a voz, voltando-se então um pouco surpresa e tentando descortinar na penumbra do quarto quem ousava entrar sem autorização:
-Quem sois?
-Miriam, senhora!
-Quem?
-Uma das novas serviçais do palácio.
-Como disse, não preciso de nada. - A rainha tentava fixar o seu olhar no rosto da visitante.
-Eu sei majestade. Mas Ischtfall precisa de vós!
-Que dizeis? - A rainha ergueu-se prontamente, escandalizada.
-Majestade não me julgueis mal, nem chamais os guardas. Tive tanto trabalho para entrar aqui sem ser vista...
A voz que lhe chegava aos ouvidos era de uma jovem, demasiado jovem para uma serviçal e isso de certa forma sossegou Latvéria, disposta a perceber o que a serviçal pretendia:
-Aproximai-vos. Quero ver a vossa face!
-Certamente minha rainha.
Miriam no seu cabelo castanho apanhado por um tosco rabo de cavalo mal feito, caminhou lentamente até se acercar da rainha e então fez a vénia real:
-Pelos Deuses das chamas da morte, sois uma criança. Que idade tendes?
-Dezassete anos senhora.
-Sois de Ischtfall?
-Sim minha senhora. Filha de Rorin e Magdath. Nascida e criada em Ishtfall.
-Magdath ? - repetiu a rainha secamente.
-Sim majestade.
-A retornada da montanha?
-Essa mesmo majestade. - A jovem parecia agora ainda mais nervosa.
Latvéria aproximou-se colocando a mão sobre a cabeça da jovem, desatando-lhe o tosco nó do rabo de cavalo, erguendo-lhe o queixo com a palma da mão e num tom ríspido inquiriu:
-Acaso sabeis a pena por invadires os meus aposentos sem autorização?
-Doze vergastadas, minha senhora.
Pela primeira vez em muitos anos a rainha sorriu:
-Explicai-vos então!
-Majestade, eu cresci com a minha mãe a afirmar a pés juntos que vos poderia curar. Ela insiste que a vossa doença sois vós mesma e que o nosso rei sem a vossa presença ou reparo se tornará fraco, alvo fácil das invejas que reinam no palácio...
-Por Rarhh que imaginação fértil tendes...
-Minha rainha, só conto o que ouvi da boca dela  anos a fio e foi por isso que me ofereci para estar junto de vós. Mas eles puseram-me no apoio à cozinha... - Miriam falava de um modo muito rápido e quase sem respirar.
-Calai-vos... - Ordenou a rainha alertada por vozes no corredor.
As vozes aumentavam e os passos apressados eram agora mais audíveis:
-Rápido, escondei-vos. Não deixarei que vos vejam!
Com uma destreza sem igual a jovem mergulhou para baixo da cama da rainha, encolhendo as pernas e com uma energia que há muito a rainha não usava, Latvéria atirou-se para cima da cama, fingindo dormitar:
-Majestade, peço desculpa incomodar, mas é hora da ronda e desejava saber se precisais de algo. - perguntou uma idosa serviçal.
-Não necessito de nada. Deixai-me em paz..
-Muito bem, majestade.
-E suspendei as rondas por hoje...Tanto alarido que fazeis que me dão dores de cabeça. - Mentiu a rainha apercebendo-se de mais vultos à entrada da porta.
-Com certeza majestade.
Assim que o som dos passos se foi tornando cada vez mais longínquo, a rainha voltou a erguer-se e aguardou que a jovem saísse  do seu esconderijo:
-Menina Miriam o que irei eu fazer consigo?
-Majestade, peço-vos que me deixais falar tudo...
-Falai. Creio que não terei outro remédio. - Concluiu Latvéria de novo com sorriso no rosto.
-Como estava a dizer, precisava de vos ver. Não serei útil a Ischtfall na cozinha, mas ao vosso lado. Sobretudo depois do que ouvi.
-E que foi que ouvistes?
-No caminho para cá, uma vez que pretendia passar despercebida, passei por uma sala do palácio, com muitos homens, um deles todo bem vestido e galante, outro gordo e de voz de trovão...
-A Ala dos Nobres e creio que esse senhor que haveis descrevido é meu tio! - Ripostou a rainha cada vez mais divertida.
-Pois bem majestade, acontece que eles planeiam fazer alguma coisa a um forasteiro que pelo que percebi veio de Borren e vai ser general e enfrentar os maus .. - A jovem fez uma curta pausa para respirar.
-Quem derrotou? Que forasteiro?- A rainha estava demasiadamente confusa com o relato.
-E parece que o conselheiro está feito com eles.- Opinou a jovem ignorando as perguntas.
A rainha perdeu imediatamente o seu sorriso, a sua face tornou-se de pedra e a rigidez dos membros que tanto a apoquentava voltou em força:
-Que tenho a ver com isso? - Indagou como se se dirigisse a si própria.
-Tudo majestade. A minha mãe pode ter muitos defeitos, mas creio que ela tem razão. Só ela vos pode curar!
Latvéria olhou de novo para a menina  e  a custo dirigiu-se até à janela contemplando a Montanha, eterna e imóvel e no entanto cheia de vida.
A jovem de faces rosadas aproximou-se da rainha e perdendo de vez as formalidades, retirou uma espécie de amuleto do bolso e colocou-o na mão da rainha:
-Que fazeis?
-A minha mãe diz ser o olho de Matuka, a Deusa da Natureza e que vos dará forças.
A rainha contemplou a esmeralda:
-Tem ar de ser valioso pequena Miriam.
-É vosso majestade! Segundo a minha mãe ela brilhará consoante a vossa energia e vontade.
Latvéria contemplou com ternura os olhos castanhos vivos da jovem e sem hesitar, proferiu com uma segurança que há muito não usava:
-Gosto da vossa paixão pelo nosso reino e sobretudo por mim. Há tanto tempo que sou ignorada e esquecida que já não me lembrava da sensação do sangue a ferver nas veias ou dos olhos a transbordarem como o nosso bonito lago nas cheias de inverno.
-Majestade, se me permitis a afirmação, sois mais bela vista ao perto que quando vos via à varanda do palácio.
-Oh, como podeis dizer tal? - Afirmou a rainha enojada. - Estou um maltrapilho, velho e gasto....pareço um desses trajes do povo da Montanha!
A jovem fingiu que o comentário não a incomodou:
-Majestade, olhai a vossa mão!
A esmeralda brilhava com uma intensidade invulgar na palma da mão direita da rainha:
-Que bruxaria é esta?
-Não é bruxaria majestade. É Matuka a pedir que acordais desse estado e salvais Ischtfall!
Latvéria avançou até ao espelho encardido pelos anos de desleixo na limpeza, roçou a manga do seu vestido já roçado pelas longas horas que passava deitada no solo de pedra, nas suas crises de ansiedade e contemplou um novo olhar ao espelho.
Decidida e frenética abriu o postigo na sua totalidade, permitindo a total entrada de luz desse fim de tarde e num tom de voz bastante alto, anunciou:
-Por Matuka, que não sendo minha deusa me acordou, por Ischtfall e sobretudo por vós pequena Miriam é chegada a hora de ser a rainha! Acompanhai-me.
-Mas os guardas...
-Nada temas , o medo acabou de sair deste palácio
E sem demoras a rainha, abriu com violência a porta de saída do quarto, seguida muito de perto pela jovem,
Com um ar decidido e secretamente sorrindo o pássaro voltava a querer voar!







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