quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Lápide- Capítulo 8

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Tomei o amor como garantido e imortal
e afinal, mal o conhecia…
Nunca o olhei nos olhos, nunca lhe aqueci as mãos,
nunca ouvi o que dizia.
Atirava-lhe  miséria e esperava que estivesse presente,
para sempre…

http://librisscriptaest.blogspot.pt/2013/11/sem-titulo-2.html




LA DOLCE VITA


Eu tinha caído do céu, como se fosse uma lágrima de anjo e de repente  era uma bola de água, do tamanho de um pequeno berlinde e motivo de uso e de gozo para um campo de futebol imaginário. Era uma pequena bola que apesar de ser indestrutível, mudava por segundos de forma, mediante cada pontapé que apanhava, até voltar à minha forma natural de bola e de novo era pontapeado. Era uma bola de água criada, feita e pensada para ser usada pelos presentes nesse jogo que se deliciavam com a minha tortura,até se fartarem e me pontapearem para o próximo. Tinha olhos e não boca e via os presentes alinhados nesse campo imaginário. Lá estavam todos felizes: Os meus filhos, a ex-esposa, o meu chefe, o outro cabrão que conseguiu a promoção no escritório que devia ter sido minha e eu mudava de forma depois de chutado, tentando me adaptar ao momento e quando recuperava era novamente chutado. E em cada chuto, surgiam risos de escárnio nos presentes que batiam palmas e motivavam o próximo jogador a desferir o seu melhor pontapé e de repente, quando já estava a perder qualquer esperança de poder descansar, de poder usufruir da minha forma original, surge as mãos calmas e tranquilas da Maria, a doce Maria a salvar-me e a recolher-me nos seus braços, num abraço cerimonioso mas ao mesmo tempo quente e protector. Recordo que lançou um olhar recriminador e virou de costas, levando-me para fora dali, permitindo a que no fim, eu recuperasse a minha forma original e a conseguisse manter e depois beijou-me, baixou-se e largou-me deixando-me rolar livremente à procura do meu caminho. Não se despediu, não me seguiu, nem me reprimiu, apenas ficou a me ver rolar, como se de certa forma, o simples motivo de me ver feliz fosse o seu último objectivo.
Havia sol, uma luz poderosa nesse momento. Algo de inesquecível e inexplicavelmente belo. Um quadro pintado a aguarelas de ponta de pincel bem grosso e majestoso. Um quadro perfeito do que poderia ser a felicidade na forma de uma bola colorida pelas imagens de uma vida vivida, mas subitamente durante esse sonho ocorreu-me que uma tal bola perfeita poderia se partir, ser pisada, rebentada, esmagada e triturada sob os pés de uma tirana, ou furada na ponta de um egoísmo alheio à minha vontade e ao meu desejo de correr e então, desobedecendo às leis da física e porque de um sonho se tratava 
E depois acordei, gostaria de dizer que tinham sido os risos e o rádio bem alto que me despertaram do meu sonho de ressaca nesse inicio de tarde, ou o barulho de panelas e talheres na cozinha, mas na verdade acordei sobressaltado pelo sonho. 
Não sei que dia da semana é, já não me lembro bem do mês em que estamos e muito menos sei porque o diabo do rádio berra uma voz esganiçada de um qualquer cantor norte-americano. Desde que me entendo como gente, mais ou menos a partir do segundo mês no útero, que odeio acordar ou que me acordem repentinamente. Se normalmente já sinto dificuldade em ter um raciocínio clean, quando estou cem por cento acordado, dificilmente o consigo quando acordo estremunhado como que pontapeado por biqueiras de aço de uma realidade atroz que não nos abraça nos sonhos, nem nos dá colo de esperança.
Sinto no quarto a fragrância da nossa entrega, o doce cheiro do sexo,  da indecência e das actividades nocturnas e isso me motiva a me levantar e fazer parte do mundo dos bem acordados. Preciso de uma caneca de café, preciso de um sorriso, preciso de um novo início, preciso no fundo que me sacudam vezes sem conta até todos os ossos se reunirem de novo e voltarem a erguer este edifício quase cinquentenário. Não tenho muita esperança no sucesso dessa missão e no entanto algo terá de ser feito...Um dia.
Desço as escadas de madeira como nunca desci em anos, descalço e de boxers. Já morreram os tempos do pijama bem engomado debaixo da almofada e dos chinelinhos que compravas em promoção todos os invernos  no Corte Inglês. Agora sou livre, agora sou defunto vivo, agora não quero saber. Repara que não sou radical, isso seria descer nu a escorregar pelo corrimão como uma criança rebelde, sou apenas contestatário do insucesso do matrimónio.
Na cozinha Maria arrancou-me um Oh de espanto. Panquecas e café fumegantes, ambos deliciosos e acabados de fazer, pousados na toalha de vermelho vivo, num aparato visual capaz de mover um paralítico escadas acima ao pé-coxinho. Maria, doce e suave Maria. Nome de bolacha, género de sustento, dona do meu advento, do primeiro tempo do meu ano litúrgico. Se Cristo tem os seus mistérios, tu minha desconhecida Maria és um terço de coisas boas que de bom grado rezarei no teu regaço. A pobre mulher recebeu-me com um beijo apaixonado, sentou-me à mesa, serviu-me a panqueca e encheu a minha chávena de café, enquanto cantarolava algo num inglês imperceptível e vendo-me ali, entregue à minha fome abriu-me o livro da sua vida e desfez-se em confidências como se realmente eu tivesse perguntado.
Lá explicou na sua voz sentida que também ela já sofrera muito na vida, que também ela havia sido largada, esquecida e deixada ao abandono por um crápula que a seduziu na sua santa terrinha ( creio ter mencionado ser lá do Norte) e a trouxe jovem e cheia de sonhos para a capital, seduzida por uma vida a dois de trabalho, respeito e amor. Prometeu-lhe um emprego, talvez num shoping , ou num dos muitos restaurantes famosos onde segundo o pulha, os seus amigos de infância eram os donos. Prometeu-lhe de mão dada com ela, uma vida boémia, cheia de aventuras e descobertas, onde um mais um, seria apenas um só. Dois juntos no mesmo caminho, sob o mesmo tecto. E nas maiores hesitações dela, porventura desesperado, jurou-lhe um vestido branco de véu e grinalda, numa festa de pompa e circunstância e prometeu-lhe que quando regressasse à sua terrinha seria como senhora dona tal, mulher de respeito e de posses e então teria o perdão ou quem sabe o respeito dos seus pais pelo abandono da casa a meio da noite.
Acenei a tudo o que dizia como se realmente me importasse, como se realmente partilhasse a sua dor, emborcando outra panqueca e assistindo ao fino desaparecer do açúcar, dissolvido no café matinal da minha inconsistência.
Claro, explicou-me ela já em volume mais alto, que o palhaço perdido de dívidas, queria e pretendia apenas que ela trabalhasse para ele, que limpasse escadas, casas, que usasse o seu sorriso ou o seu corpo para abrir a torneira do dinheiro necessário para saldar tudo e mais alguma coisa. Teria de ser ela, explicou-lhe ele de lágrima no canto do olho, porque ele tinha mais estudos, mais conhecimentos da capital que ela e logo ele seria candidato a melhor emprego. Até poderia ser pensou ela na altura , mas só aconteceria se o dito cujo entrasse no café onde ele passava as tardes e lhe pousasse no colo, substituindo outras inocentes como ela seduzidas em tardes de léria, enquanto ela o esperava, todas as tardes enfiada num quarto sem luz natural, ansiosa de que um dia ele encontraria um emprego, ou pelo menos uma forma de sustento.
Um belo dia, ao fim da tarde ele não voltou. Nunca mais voltou e seis meses depois de ter abandonado o seu lar, a sua terra encontrava-se sem dinheiro, sem sustento e com vergonha de voltar a encarar o rosto duro paterno.
Afinal a doce vida morreu gelada, de inércia num sonho moribundo, sem ajuda, sem pão, sem senão. E disse isto enquanto eu gemia por um pedaço de mel, apontando com o indicador, não ousando interromper com qualquer interjeição, com medo de provocar uma inundação de lágrimas no rosto da pobre Maria. Sentia o tremor e a dor na voz dela, via os seus olhos humedecerem e desisti de insistir no mel. Voltei a minha atenção para o café, com dois pingos de leite, aguardando que o relato acabasse rápido. Nunca prestei grande atenção à vida dos outros e não sou de me comover com passados, excepto o meu, esse sacana do meu passado merece ser ressuscitado todos os dias à luz das velas, qual culto satânico. E porquê? Porque me dói, porque me faz sofrer e a minha dor não é página sentimental é minha, somente minha e só eu é que sou o indicado para lidar ou morrer com ela.
Dos lábios esborratados e baton barato da ingénua Maria são cuspidas as boas-novas. Trinta anos depois, aos quarenta e oito anos ela sobreviveu ao seu triste fado. Arregaçou as mangas e fez-se à vida. Deixou de ser a Maria da Aparecida, a Maria saloia de uma aldeia que ninguém ouvira falar, para ser a Maria faz-tudo, a Maria empreendedora. A Maria dos cosméticos por catálogo, das confeitarias a part-time, das limpezas após horário laboral dos escritórios e então a primeira revelação. O soco disferido ao meu estômago. Sim, a primeira vez que me viu, que me conheceu, foi lá. No bolorento escritório. Confidenciou-me quase ao pé do meu ouvido esquerdo que foi paixão à primeira vista. O meu porte, a minha altivez, os meus gestos de cavalheiro e seguiu-me um dia até casa, onde me viu entrar. Casa essa que viria a visitar, oferecendo os seus serviços e tudo para quê? Para estar perto de mim. E a parva da minha ex-esposa, a julgar que tinha sido um anjo a guiá-la a nossa casa, "tão barata e prestável" catalogou ela no seu snobismo. Pois sim, faz como entenderes, respondi eu no meu "quer lá saber disso."
Perdi de repente a vontade de fingir que a ouvia, perdi o apetite e a vontade de beber café e ainda em choque a observei como um não crente assiste a um milagre, num misto de inquietação e espanto. Aquela mulher, aquela doce e ingénua mulher, aquele Ser espezinhado por mim diariamente, que me lavava as cuecas, que limpava a minha sanita, separava o meu lixo e se sujeitava há cinco anos aos caprichos da minha cabra Leonor, fazia-o porque queria estar perto de mim.
Olhei em devoção os seus olhos rasgados, como se fosse uma chinesa, o seu rosto perfeito. Puxei-a para mim, abrindo o meu robe que ela tão cerimoniosamente usava no seu corpo e expondo a sua nudez ao meu olhar lascivo, beijei-a como nunca beijara alguém na minha vida.
Entre panquecas e um bom café La dolce Vita  


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