terça-feira, 16 de outubro de 2018

Lápide - Capítulo 15



O Amor é o profundo
e o profano unidos sem engano,
ou dúvida!
É a certeza de que somos maiores
e melhores do que acreditamos ser.

Inês Dunas


THIS IS NOT HOLLYWOOD!



Há um cheiro que nunca apagamos totalmente da nossa mente. O cheiro de casa, o cheiro que nos acompanhou em várias fases da vida até ganharmos assas e voarmos e armados em pinto calçudos virar costas a tudo, com a teoria ingénua que poderíamos um dia ser felizes noutro lado. Memórias, sons e riso isso pode ficar ou não na nossa memória mas o cheiro a tudo e a quase nada fica grudado como pastilha elástica no nosso sapato em dias quentes de verão. Não sai nunca. Penso mesmo que os cheiros são a arma secreta deste Universo. Um cego cheira, um paralítico cheira, um mudo cheira e por sinal um surdo também.
Quando recordo a minha casa de infância, a única até ao momento em que posso realmente chamar de casa a primeira ideia que sempre me vêm à cabeça são os cheiros...a peru no Natal, a rabanadas, a leite creme, a bolas de naftalina das camisolas guardadas com amor nas pesadas gavetas, do cobertor da cama, do Pronto de limpar o pó, da lixívia em dias de frenética limpeza pela pascoa,( não fosse o compasso ficar com ideia que a senhora minha mãe não sabia nada de limpezas), em suma o cheiro a nós, a nosso, ao passado. E depois temos também  o cheiro da relva molhada no jardim das traseiras em correrias desenfreadas. O cheiro da fruta, no cesto de vime, os alperces e os pêssegos reluzentes entre as uvas à espreita e o inesquecível cheiro da primeira vez com a Ritinha, afundada no colchão na ausência dos meus pais...Dono e senhor do momento a provar à atrapalhada menina que não era só namorado do liceu mas igualmente homem, deixando a derivação dos meus dedos em sustenido fazerem a introdução do meu desejo, como tocador de Harpa sensível aos caprichos de uma volúpia teen que quer sentir, que quer apalpar, mas sobretudo ver para crer como São Tomé apregoava. Lá no meio das pernas dela, no começo da afirmação da masculinidade, perturbação feroz que ganhava gradualmente o devido volume nas minhas calças e eu maestro dos meus dedos, da minha própria orquestra, um Quinteto em Si e depois de tudo acalmar, de tudo acabar fica aquele cheiro, aquele odor a pecado no quarto, pior do que o do cigarro que por mais janelas abertas que se abram não conseguimos disfarçar. Aquele cheiro único que se entranha na pele, na alma e nos acompanha nas nossas recordações durante a vida. A Ritinha tomada no meu quarto, no meu centro do império, dono e senhor desta parta da casa, nesta louca instituição a que chamam de família.
Família...Somos lobos não solitários, gostamos de viver na nossa alcateia e no entanto dificilmente a escolhemos. Os elementos da alcateia são-nos dados, impingidos, adquiridos por convivência ou conveniência através da nossa existência, mas na verdade são poucos os que se juntam a nós numa caçada. Constatamos tempos depois que apesar de viver numa suposta alcateia cada elemento tem a sua própria agenda, o seu motivo pessoal, a sua razão de viver e ficam connosco porque lhes convêm, por estratégia ou porque nunca equacionaram sequer a estranheza de pertencer a um grupo e no fundo não ser desse grupo e vão seguindo supostamente ao nosso lado, fingindo que concordam com o que pensamos, que se preocupam com o que realmente sentimos e indiferentes às nossas metas pessoais. Não que esperasse o um por todos e todos por um no verdadeiro entendimento da frase, mas pelo menos um certo comprometimento...O mesmo que fazemos a nós mesmos mal um filho nasce. Juramos a pés juntos sempre estar ali, a proteger os nossos rebentos, a guiá-los pelo Mundo, livrando-os dos perigos, das perturbações...Mas creio que a hipocrisia dura pouco, o tempo de um sopro, de um bocejo alargado. Aquilo que no fundo fazemos é passarmos directa ou indirecta a nossa maneira de pensar, de reagir e de sentir. Transmitimos aos pobres coitados as nossas próprias aspirações, escondemos os nossos medos em força, para que os pobres dos petizes não enveredem nesses mesmos medos e ensinamos o certo e o errado, consoante as nossas vontades ou aprendizagens. Depois quando já pouco temos a ensinar ou a dizer ou até mesmo a lutar, deixamos os pobres coitados irem mundo fora conscientes de tudo saberem, quando na verdade estão tão vazios do que realmente é o mundo, como no dia em que nasceram. Mas nós cumprimos a nossa parte e dizemos para nós mesmos que os lobinhos já são ferozes, já podem procurar a sua alcateia, como orgulho de um superior que forma e formata um aprendiz.
São porém diferentes as relações entre pai e filhos e mãe e filhos e Óscar Wilde  sabia disso; " no início os filhos amam os seus pais.Depois de um certo tempo passam a julgá-los. Raramente ou quase nunca os perdoam" como é velho o retrato de Dorian Gray e simultaneamente tão actual nos nossos dias.
E ali estava eu, expectante e firme espectador do reencontro da Pitareca com o seu progenitor ou a sombra do que ele deve ter sido.
Observo atentamente o vulto arqueado ao peso dos anos, das desilusões, do desespero e talvez da impotência. Acomodado ao seu novo desígnio, ao infortúnio do tempo presente e na incerteza do futuro. As suas mãos, grossas e ainda peludas estão no entanto fundidas nos braços da cadeira, como uma simbiose perfeita e o seu olhar...Oh o seu olhar era tudo menos clarão de luz. Vago, perdido, resignado, observava sem qualquer ponta de emoção os passos cada vez mais inseguros da filha na sua direcção. Perdidos e reencontrados na inconstância do tempo, esse vil castrador de inocência e pureza emocional, esse arrasador de sorrisos e cruel contentor de emoções, recordações e sonhos desfeitos. Pitareca, a sua Pitareca, a sua menina prendada enquanto subserviente à vontade dele e posteriormente a traidora, a sem-juízo, a rebelde, a insana que o ousou abandonar e abandonar a sua alcateia, como se já fosse loba e dona de si. Agora, no passar do tempo que tudo diluiu e no vagar do tempo que lhe resta, ela voltava como ovelhinha perdida. Se ele pudesse observar tão atentamente quanto eu, veria que já não havia chama de irreverência no olhar dela,nem tão pouco observaria arrependimento mas apenas compaixão. Se olhasse atentamente e fosse dono de todas as suas competências mentais o pesado e arqueado sujeito perceberia que jamais ela iria lhe pedir perdão, nem tão pouco se desculpar. Num gesto digno do melhor filme de Hollywood ela arqueou-se na direcção do seu rosto mal barbeado e deu-lhe um beijo na face. Um beijo sentido, demorado mas ainda assim um beijo frio de certa forma prepotente e altivo, como a compaixão o pede e no entanto dos cantos da boca seca de lábios gretados do progenitor, surgiu um ténue esgar que poderia bem ser apelidado de ténue sorriso na circunstância do momento e da parca saúde dele.
Se fosse realizador,soltaria o som de harpas ou violinos em acordes melódicos, colocaria talvez umas cortinas brancas mas a fazer transparecer não a imagem mas as sombras projectadas em fino linho e por fim gritaria aos saltos Corta! E era uma cena memorável, mas isto não é Hollywood. Isto é a vida real, tão desprezível, fria e calculista como sempre a conheci. Aqui não há guião ou falsas lágrimas. Aqui há tão só o regresso de uma loba madura, que ousou vaguear nas estepes frias e incertas da vida real  e depois de quimeras mil, quis o destino ou a final ironia da vida, que voltasse a encarar o seu líder da anterior alcateia com uma tranquilidade que certamente na mente dele soará a regresso por arrependimento, mas que no fundo só volta ao sítio onde era lobinha e a vida cheirava a rosas.
Aspirei o redor como quem absorve a mais ínfima partícula de um quadro vivo, com as suas nuances, as suas derivações, os sons e os cheiros do que importa. Desejava de certa maneira gravar tudo aquilo que o meu cérebro o permitisse talvez para mais tarde, no sossego da minha calmaria dissecar cada momento na árdua tarefa de quem não sabe ao certo  que procura.
Via-a a segredar-lhe ao ouvido as inconfidências de quem tudo lhe escondeu ou omitiu nestes anos, quase adivinhava as suas interjeições, quase sentia à distância de trinta passos o respirar pesado do progenitor e via a sua mão a balouçar no ar, sem grande entusiasmo, sem grande vigor como que se o que pudesse lhe dizer ou o que sentia pudesse ser traduzido em movimentos balouçantes tão imprecisos quanto o voo de uma mosca.
Segundos que se transformaram em minutos e minutos que geraramhoras de tédio insuportável. Na verdade, após os primeiros dez minutos tudo me pareceu enfadonho, caótico e pouco inspirador. Apercebi-me de repente que aquele sujeito, gasto, arqueado, dorido e abandonado poderia ter sido eu se ela não tivesse surgido na minha vida, ou pior ainda poderia ser eu daqui a uns anos. Reagiria ela  assim?  Ou pior, talvez nem aparecesse. Talvez me deixasse ali, numa cadeira, rodeado de olhares piedosos e idosos senis, babando-me pelos cantos da boca e incerto sobre o dia e a estação do ano que atravessava. Perdeu então o interesse e de certa forma me senti salvo, quando ela regressou e me segurou no braço:
-Importas-te se eu não te apresentar ao pai hoje?
-Claro que não. - Respondi o mais sinceramente que pude, tentando esconder o alívio.
-Creio que iremos precisar de mais tempo...Nem assim ele verga!
-Nem tudo é fácil nesta vida, Pitareca.
Ela olhou-me friamente, deu-me um beijo na testa e segurando os nervos, advertiu:
-Não me voltes a chamar isso!
Incapaz como sou de proferir o termo desculpa abracei-a e pensei que seria sempre forte e jamais a deixaria fugir.







1 comentário:

  1. Li-te sôfrega, quase sem respirar, uma primeira vez, não podes deixar-me sem te ler tanto tempo!! Seguidamente vou ler-te devagar, sem pressa! Destaco, obviamente, a primeira vez da Ritinh "e o inesquecível cheiro da primeira vez com a Ritinha, afundada no colchão na ausência dos meus pais...Dono e senhor do momento a provar à atrapalhada menina que não era só namorado do liceu mas igualmente homem, deixando a derivação dos meus dedos em Lá sustenido fazerem a introdução do meu desejo, como tocador de Harpa sensível aos caprichos de uma volúpia teen que quer sentir, que quer apalpar, mas sobretudo ver para crer como São Tomé apregoava. Lá no meio das pernas dela, no começo da afirmação da masculinidade, perturbação feroz que ganhava gradualmente o devido volume nas minhas calças e eu maestro dos meus dedos", a sinestesia que veste todo este capitulo e nos faz, também, viajar às fragrâncias da nossa infância. E o drama psicologico e a metáfora dos lobos, das relações entre as crias e os seus progenitores e a condescedência às vezs cruel que os filhos criam um dia com os pais! Ler-te é simplesmente obrigatório!!!

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