quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Lápide - Capítulo 16





Quero a vida bebida de um trago,
um rasgo de loucura,
uma tortura deliciosa sequiosa de prevalecer além-razão.
Gosto que o chão me fuja de quando em vez.
De enfiar os pés em areias movediças
só pelo prazer de escapar mais tarde.

Inês Dunas


AMAS-ME?

Contrariamente ao que seria de esperar da minha parte, o reencontro dela com o pai até tinha corrido bem melhor que o que eu na minha mente tinha projectado. Esta nossa convicção humana de antever cenários, como se ao imaginarmos o pior de cada situação, estivéssemos mentalmente preparados para ela, redunda na prática geral em ilusão, numa mentira. Nunca abandonamos a propriedade animal de ter medo, por muito que o neguemos, temos de ter medo e temos medo de não ter medo. 
Creio que na minha mente receava um confronto de titãs, um choque celestial, de explosão verbal, juras de vingança e ameaças infinitas, ou talvez o pai soltasse a lista interminável de defeitos que ela teve, fez ou ainda tem. Pouco me havia preparado contudo para um cenário de quase demência do progenitor, de falta de palavras sentidas, de excesso de humildade de parte a parte. A família é de facto a coisa mais estranha da humanidade.
Enquanto brincava com a palhinha do copo de Coca-Cola, depois de à pressa termos tragado dois burgers no shoping mais perto, notava-lhe um olhar vago, distante porém não frio. Era aquele tipo de olhar que nos leva aos recônditos da nossa mente, em lentos frames, de câmera desfocada em que procuramos aqui e ali, numa expressão facial ou num respirar pesado algum sinal de alinhamento de conversa, mas tudo o que a criatura fazia era perder-se no olhar vago, próprio de quem já esgotara as palavras de todos os dicionários existentes no mundo e procura-se uma nova forma de expressão, um novo dialecto, um novo devir.
E depois aquele nada, aquele peso do silêncio, em que eu, firme espectador do que se passava e do que bailava perante os meus olhos, indeciso entre apontar um rumo, um caminho, uma conversa, ou  então bater palmas como no circo, arrotar, gargalhar, chorar sei lá eu, até peidar se isso ajudasse, nada fazia. Prostava-me fundido na pequena mesa oval, derretendo-me em pequenos suspiros melancólicos, ansioso que algo sucedesse, que o tecto caísse, que as duas senhoras que caminhavam equilibrando os tabuleiros chocassem e deixassem cair tudo ao chão, numa cacofonia estridente para então eu gargalhar, agarrar-lhe a mão e mostrar-lhe que a vida não são só melodias de Chopin, mas também operetas e polkas de Strauss.
-Vamos para casa. - Disparou ela rigidamente, com os lábios tremules e as mãos geladas.
(Vamos sim minha Lady Godiva!!, respondi prontamente de boca fechada e com a frase a estalar no meu subconsciente. Pois vamos, mas vamos em grande. Perde a roupa, sobe no meu dorso e galopa desse teu estado frígido, que aí onde se encontra o teu coração eu não tenho engenho para alcançar), mas o que acabei por responder foi:
-Uhm sim...
A gélida noite nortenha abraçava-nos como vadios ou bêbados, seres abandonados à sua sorte e eu só esperava que no rádio do carro, a estação favorita tivesse sinal, que por vezes, fruto do nenhures para onde ela me exilou nem o diabo do rádio funciona convenientemente.
O ruído provindo do luminoso aparelho a perder o sinal era mais irritante que o pouco som que se podia ouvir e ela, a minha Mortícia Addams permanecia gelada, de um cal assustador, indiferente a tudo e o pior, indiferente a mim. O falso cabedal do volante aumentava a minha angústia e tenebrosamente lá fui avançando alguns monólogos sobre o nosso papel no mundo, sobre as noites frias do norte e sobre o papel da fast-food nos dias de hoje, mas era-lhe igual e eu perdia-me completamente no significado do pesado silêncio. Que diabos, não lhe tinha morrido o pai! O homem ainda respirava, talvez não fosse o mesmo, talvez tivesse as suas condicionantes mas vendo bem, nunca somos os mesmos. Perdemos sempre algo de nós nos ponteiros do relógio da vida, nesse tic tac melancólico que sempre leva algo de nós e jamais o devolve. Como as areias do Deserto ao sabor da vontade do vento:
-Não devia ter saído daqui. - Disse ela num tom mais gélido que o habitual.
-Não se sabe! Talvez tivesse sido melhor assim...Mas eu não sou o gajo indicado para dar palpites.
Calei-me tão rapidamente como falara , (Não, não és! jamais serás o gajo com palpites certos. Olha o que fizeste ao teu lar que te abrigou durante anos.Olha a tua despreocupação para com os filhos. Uma tipa repara nessas coisas, choné. Ela esteve a dar-te corda até agora e tu, parvo...vieste atrás como um cachorrinho, com o rabinho entre as penas à procura de um doce, atrás de um sonho mítico, uma neverland como Peter Pan e agora a tipa cresceu e caiu na real...e lá vem chuto e voltas para os teus, como um exilado de guerra e ferido de arrependimento...totó) e não conseguindo rematar o diálogo, estacionei o carro, abri-lhe a porta e a conduzi ao quarto alugado.
-Amas-me? - Indagou a boca sensual que me apanhara na sua loucura num beijo rápido.
-Se te amo? Que raio de pergunta é essa?
-Amas-me?
De repente não sabia o que dizer, o que fazer ás mãos que balouçavam incansáveis à minha frente, as pernas bambas e a resposta que não me acudia à mente. Amar? Sabia lá se a amava? Sabia lá o que era isso de amar. Sabia lá eu o que haveria de responder. Deixei-me cair pesadamente de costas na cama, como se tivesse sido baleado de morte por um pelotão de fuzilamento...melhor, por um só atirador. Um sniper furtivo apetrechado com balas de calibre para matar elefantes. Um imenso buraco no peito,maior que qualquer cratera lunar...Amar...Ah sei lá. Enrolava entre dentes o filtro já molhado do Marlboro e acendi-o à pressa.
-Foi o que calculei. - Atirou ela ajoelhando-se perto de mim, e ocupando o meu colo com os seus braços. Virou-me a cara como se tivesse dificuldade em me olhar e sentenciou num longo monólogo:
-Como podias tu me amar...És egoísta, egocêntrico, materialista, covarde, mentiroso, presunçoso, tarado, magnânimo,irresponsável, velhaco, calculista, frio, mulherengo. No fundo só pensas em ti e no que te convêm. Não te dás ao trabalho de te preocupares com o que os outros pensam ou deixam de pensar. - A mão dela subia a minha perna, abrindo como se fosse um leque sob o meu colo, apertando as minhas delicadas preciosidades sob a calça, fincando-lhes os dedos para que sentisse a dor imediata, ou quem sabe fosse só o prazer de me ouvir gemer. Tentei sem sucesso remover a mão e aceitei calado esse castigo, mordendo o lábio inferior. Que fazia ela?
-E no entanto, escondeste todos esses predicados no mais fundo de ti...Por mim. - Sentia o fecho das calças a abrir enquanto ela soltava "o prisioneiro" que se erguia diante dos seus dedos e o apertava e o provocava, beliscando-o. - Só pode ter sido amor e agradeço-te por isso. A Morticia Adams virava Wandinha Adams, e os seus lábios eram instrumentos do meu desejo, beijando-me freneticamente enquanto a sua mão direita, obrigava em movimentos curtos e ascendentes a manter o fálico desejo activo.
Era presa cativa da sua fiel cruzada contra os traumas da juventude, era o seu espanta-espíritos e sobretudo o alvo da sua fúria, que não podendo descarregar em si mesma, usava-me a seu belo prazer, com uns uivos sussurrantes roucos e o olhar decidido , próprio de quem domina a cena. 
O amor também é isto ou é sobretudo isto. Não existe amor sem dor. As duas realidades são intrínsecas à condição humana e para ser mais analítico, recorrendo a uma figura geométrica, diria mais, não existe amor sem dor e no vértice do triângulo do prazer, lá em cima, bem por cima, a dádiva de sofrer e fazer sofrer. O amor não é só um beijo sentido e molhado, um choque frontal de lábios, bálsamo de todos os sentidos em perfeita comunhão, é também o sal das lágrimas derramadas por prazer ou por decepção. O amor é sangue efervescente, quente e irracional. Afinal mesmo o coração ao bater por amor, também sangra e o sangue é vida e por salvar vidas e o amor, base do triângulo perfeito do divino prazer.
De norte a sul ela rasgava o meu peito com as garras postiças de unhas de gel, em sulcos saliente, poupando ou contornando os mamilos, desenhando uma estrada de dor, para me lembrar a mim, mortal apaixonado e sem reacção, que agora ali naquele momento e naquele local, ela era a senhora do mal, a ex-menina do papá, a nova imperatriz de todo o meu EU.
Os meus mamilos eram o ultimo alvo, num contorcionismo forçado entre os seus dedos, motivando uivos de dor, disparados como misseis em várias direcções.
-Amas-me? - Repetia ela soltando a roupa da cintura para baixo.
-Merda...Sim. - Contra-ataquei em suplicio, preparando-me mentalmente para a montada.
-Mentiroso, idiota, traste...Fraco. - Sentenciava, erguendo uma perna e sentando-se sobre o meu sexo.
 Agora eu não era mais que seu cavalo, seu bicho preferido e ecoava na minha mente uma letra dos Xutos & Pontapés que ainda hoje canto entre dentes recordando esse dia:

"Se me amas

Se me queres
Não faças de mim palhaço
Não quero ser um fracasso
Nas tuas mãos"

                                                                https://www.youtube.com/watch?v=HLMD1ryBL7I

E a ultima coisa que de facto queria era ser o fracasso,  não conseguir ser o saco de pancada,  o alívio das suas frustrações e simultaneamente, não lhe proporcionar a ela o gozo, a expiação, o orgasmo necessário ao seu prazer.
Não havia tempo para muita análise, nem houve grandes momentos de pausas. Montada nos meus quadris, numa posição de vaqueira experiente, num ritmo de galope desenfreado, socava-me, mordia-me beijava-me, arranhava-me, gritava, gemia e chorava de pernas bem ficadas ao meu corpo e embora eu procurasse sem sucesso o seu cabelo, numa tentativa de freio ou evitasse um movimento mais forte, não queria que ela parasse, não ali, não naquele momento. Queria mesmo que tal loucura se extendesse para o resto da divisão, o resto da cidade, o mundo ou quiçá o Universo.
Nunca a tinha visto assim, tão cheia de vigor, tão dona de si, tão arrogante e simultaneamente tão dada, tão maliciosa mas ao mesmo tempo tão carente, tão singela mas com laivos de vil criatura e dei conta, ali para mim, que nunca conhecemos uma pessoa na sua plenitude e que o nosso amor também é isso...Um descobrimento dela, de nós, do nosso viver até as peles secarem o sangue parar e os ossos se desmancharem num puzzle incompleto.
- Ah, foda-se como te amo!






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