terça-feira, 12 de março de 2019

Lápide - Capítulo 17




Tenho muito por que agradecer,
até as cicatrizes foram felizes descobertas
e não existem feridas abertas à espera de sarar!
O tempo não cura nada,
só a nossa loucura de viver nos pode trazer à tona d'agua!

Inês Dunas: Tic tac...

http://librisscriptaest.blogspot.com/2018/12/tic-tac.html



ONCE UPON A TIME...


Era uma vez .... tudo sempre na vida devia começar assim, um "once upon a time" alinhavado, redigido a sangue e perpetuado nas estrelas para que permanecesse imortal. Todo o Homem têm a sua fábula, a sua história de vida, a sua paixão de ter vivido ou sobrevivido às vicissitudes de uma vida madrasta, tão vil quanto as dos contos de fadas, com ou sem maçãs mas sempre vis  e eu e tu não somos excepções. Repara doce ninfa que pronunciei eu e tu e não o nós precisamente porque não há nós. Tu és a minha ninfa, tu és tu e és a luz da minha nova aurora, a razão do meu acordar e talvez a razão das noites em claro, perdidas em tacteamentos nocturnos pelo teu corpo, repousado e quente ao meu lado. Mas ainda assim somos duas almas penadas, seres incompreendidos pelo resto da sociedade, seremos génios ou loucos? Jamais saberemos , mas aquilo que importa reter é que somos a simbiose perfeita da loucura em todas as coisas e nas mais pequenas virtudes.

Espelho, espelho meu já existiu alguém mais feliz do que eu?

Eu e tu matamos um drama, uma desgraça inacabada e juntos começamos um novo romance, tantas páginas de magia que escrevemos agora juntos, epopeia dos sentidos, dos prazeres e amores correspondidos, best- sellers de uma vida recomeçada nos teus olhos, nos teus afectos e nos meus beijos.
Pitareca dos meus dias de vulcão, de relâmpago, de renascimento, de emoção, de prazer, de recomeço. Senhora das meus gestos, dos meus pensamentos, dos meus pequenos nadas. Personagem principal no meu romance, nos meus devaneios e eu cavaleiro de um romantismo que o tempo tinha calado, que a falta de paixão tinha enterrado e que ao meu coração fora negado, ergo a espada, monto a cavalo e luto agora a teu lado.
Tiveste a tamanha coragem de recomeçar, onde o teu pai deixara. Não do zero, mas seguramente do menos um.  Não sendo pessoa muito abastada, o teu pai tinha sido calculista e aqui e ali um pouco aventureiro. Criara duas empresas, comprara apartamentos e no passado enquanto a saúde o permitia geria pequenos negócios de vendas, mas o lucro, esse residia nas rendas cobradas a espaços comerciais que lhe permitiam um retorno mensal interessante. Mas tudo estava em risco, agora que o outrora forte homem se encontrava confinado a um lar , recuperando de uma forte mazela , a sobrevivência dos negócios estava em risco. Obviamente que tu, doce Pitareca percebes-te o que estava à vista e todos e ninguém via. Que teimoso como o teu pai era, jamais entregaria tal herança à gestão de um qualquer contabilista e mesmo contra a tua vontade mergulhamos de cabeça na escrita e nos negócios de família. Eu enterrado no sofá, redigindo cartas solicitando o pagamento de rendas em atraso e tu sentada na secretária de pernas semi-abertas, cabelo apanhado na nuca e de lápis na boca como se fosse um punhal. Abrias livros, fechavas cadernos, vasculhavas agendas, reunias folhas de papel dispersas por toda a divisão, coçavas a cabeça e eu reparava na veia saltitante do pescoço, numa pulsação nervosa. Ah, mas  não eram as contas, o deve e o haver, ou a parafernália de rabiscos que te enervavam. Nem tão pouco o facto do teu pai nunca ter usado um  computador e usar cadernos grossos azuis  que numerava numa ordem que à partida só ele entendia. Não, o que te enervava era o regresso a casa. Senti-o desde que entraste, nos teus olhos e nos teus lábios. Eram apenas algumas horas que lá passávamos, porque te recusas-te a deixar o nosso quarto alugado, mas essas horas mexiam  contigo, como se de certa forma receasses qualquer fantasma, ou ouvir a voz pesada do teu progenitor.
Nesta nossa relação habituei-me aos teus tempos de silêncio, a saber gerir as tuas expectativas e a torná-las minhas também. E quando o infortúnio, a má-sorte ou a fadiga te encontrar, estarei perto para te segurar, para te apoiar, para cerrar os dentes por ti pois afinal o meu caminho também se faz com os teus passos.
Por vezes lançavas-me um olhar de compreensão e nos momentos bons tinha até direito a um sorriso ténue mas límpido e sincero, como quem afaga a cabeça a cabeça de um animal de estimação grato pela companhia e presença deste, mas outras vezes fico invisível, dando-me a sensação de me ter fundido com o sofá e de já não estar ali. Temia, inclusivamente nesses momentos, que subitamente deixasse de ter existência corpórea, que me transformasse em nada, que ninguém mais me pudesse ver e que mesmo tu não me pudesses tocar.
Mas no recanto, no nosso recanto eu sabia que me vias e me dispensavas então toda a tua atenção que focaras nos pesados cadernos. Aí nesse instante eu era de novo o ar que respiras, o teu boneco articulado, a tua necessidade, a minha necessidade, as tuas carícias em arranhões vigorosos, as minhas mordidas em carne suada, quente...Os teus lábios, o meu puxar de cabelos, os teus gemidos, os meus queixumes de prazer. Não fazias amor comigo, nem tão pouco eu esperava isso. A cama era a nossa arena e a campainha da vitória soaria quando o cansaço, o orgasmo, o sono chegasse. Por vezes fazíamos pequenos intervalos, em pausas estratégicas, procurando uma nova posição, uma nova vantagem e lá voltávamos a um simulacro de luta livre não ensaiada, no improviso dos beijos e afectos e por favor que fiquem as marcas visíveis.  
O mais irónico de tudo, guerreira Pitareca é que ambos sabíamos que não precisávamos nada disto e muito menos que precisaríamos de algo do teu pai. Não que dinheiro não fosse um problema, mas ainda tinha que chegasse em horas de aflição e dada a tua recusa ( repulsa?) pela casa de teus pais, pelo que ele deixava ou pelo que ele pudesse ter, que se venderia a granel e se lhe entregasse o dinheiro. Certamente que ele não sairia a perder e amealharia algum que lhe permitisse um sobreviver tranquilo e simultaneamente um conforto na doença.
Mas era uma questão pessoal, talvez mesmo um ajustar de contas teu com  o passado e com o teu pai. Era algo que tinhas de fazer e que precisavas que fosse bem feito e sendo assim, nada mais me restava senão erguer a lança e te acompanhar em tal fervorosa batalha. As batalhas são para serem travadas no local próprio e no tempo certo e esta permitia em caso de vitória uma volta de honra vitoriosa no repisar das tuas memórias.
Eu sabia contudo que em segredo preparavas a grande arma. A mãe de todas as armas, a tua vitória seria fulminante e para isso precisavas de todo o tempo possível para conseguires o efeito esperado, agora que as barreiras familiares estavam caídas e a resistência do teu progenitor já não era a mesma. Mas não poderias cometer erros.
Preocupava-me contudo a opinião dos outros. Pensariam eles que só tinhas regressado para colocar em ordem as contas e amealhares para ti o dinheiro, deixando o teu pai entregue a um lar? Achariam eles que seria a minha presença, talvez até os meus conselhos que te fariam lutar assim tanto? Temeriam os outros, os restantes familiares. que voltasses a desaparecer, desta vez com toda uma hipotética herança? Mais preocupante ainda, estarias tu preparada para um julgamento do povo, regra geral tão picuinhas com a vida dos outros?
Mas o tempo, esse fiel conselheiro, haveria de te dar razão nestes dois anos que se passaram de intenso labor, fúria contida e explosão sentida no retorno de todos os teus ( nossos?) esforços. Nunca conseguimos deixar o nosso pequeno santuário à berma da estrada. Um segundo andar alugado à pressa, quando enjoaste o quarto de Hotel. Suficiente próximo contudo do lar do teu pai e  relativamente afastado do teu lar de infância. Era um meio termo, uma meia distância consentida num tratado de paz nunca assinado pelo teu progenitor, mas no fundo consentido por todos, até por mim. E deliciava-me como o modo subtil carregado de malícia que usavas no relato dos negócios ao teu progenitor. Recordo-me mesmo de quando anuncias-te que tinhas decidido aumentar a renda ao restaurante tal e após teres percebido o riso de concordância dele, logo anuncias-te como uma adaga espetada a sangue frio, que tal era normal, pois tinhas investido de novo nas canalizações e em outras obras e o teu prazer quando as feições do teu progenitor se endureceram, para logo de seguida espetares o que faltava da lamina ao anunciares, com requintes de malvadez, que entre o deve e  o haver, não obstante o aumento o lucro é na margem mínima, quase imperceptível. Assistias então maravilhada ao acenar da cabeça do pesado sujeito, sem forças para te contrariar e provavelmente lamentando não ser capaz de te distribuir uma galheta. A boa e velha galheta, que segundo me contas-te ano passado (quando finalmente decidis-te a falar sobre isso!) era presença assídua na tua face, em vários momentos do dia.
E nesses dois anos eu não era sombra, ou Sancho Pança de uma Quixotesca donzela. Não, nesse tempo perdera-me noutras delícias, no prazer duro do pequeno pomar que comprara e onde passava as horas mortas da tua ausência. Era ali, junto de Salvador, esse poço de sabedoria agrícola que eu aprendia e assistia ao prazer do nascimento de pequenos frutos, ao brotar das flores nos ramos que EU cultivara, que EU  podara e que de certa forma eu ajudara a crescer e a tornar-se forte. Reconheço que de início havia comprado essa parcela de terreno, oficialmente devido ao baixo preço, mas com o secreto plano de construir algo para nós. 

Espelho, espelho meu já existiu alguém mais feliz do que eu?

Gorado o plano de construção do nosso Forte de guerra, a nossa Sede Imperial,a nossa Embaixada da nossa paixão, na tua insistência pelo quarto alugado, vi ali uma forma de me distrair e pouco a pouco fui ganhando o gosto, ainda que discretamente e de forma ligeira, pelas árvores de fruto, até ao dia em que Salvador, no alto do seu metro e oitenta, proferiu num hálito de bagaço a palavra mágica...Enxertia.
E que era isto afinal? Simples. Era uma forma de partida à mãe natureza. Salvador jurava-me a pés juntos, ser possível, com os cuidados certos e respeitando certos procedimentos, de colocar uma laranjeira a dar limões. Que diabos, aquilo era demais até para mim, que sempre me considerei bem informado. Então ele explicou-me que tudo passava pela união de duas partes ( raiz e parte aérea) de plantas da mesma espécie ou de espécies da mesma família, passando a formar um só individuo. Contudo, ressalvava ele num tom de voz de professor da primária, para esta união ser bem sucedida, as partes devem ter afinidades e ser compatíveis.  Corri para o Google, e nunca esqueci a primeira vez que te contei. Foi à noite, uma das muitas noites em que chegavas morta de cansaço de casa do teu pai, ainda com a cabeça a latejar de contas e números. Mal entras-te em casa, apressei-me a te explicar, prática Pitareca todo o processo, como se fosse um garoto que tinha acabado de montar o seu próprio Lego, contei-te demoradamente e apaixonadamente os cuidados a ter e todo um maná de apontamentos recolhidos aleatóriamente no google e depois de te explicar excitado todo o processo, tu descalçaste-te encostaste-te na cadeira e sorvendo um gole de vinho , retorquíste estendendo-me a mão: 
-Então e eu?... Serei Laranja ou limão?
-Porque serias fruta?
-Porque te alimento.
-Podias ser vinho.
-Porque te dou a volta à cabeça...Ainda?
-Sempre Ma Chère!

Espelho, espelho meu já existiu alguém mais feliz do que eu?

E ajoelhei-me, de cabeça pousada no teu regaço e mente entretida no pomar do meu embaraço com a promessa não proferida de qualquer dia falar sobre esta nossa vida, esta nossa história, este nosso momento, todo este longo documento redigido desde o primeiro instante que a parva Leonor me trocou, até que me rendi a ti e tu a mim. Esta nossa epopeia que bem poderia começar com o sonoro..."Once Upon a Time", até ao dia em que alguém nos leria!



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