sábado, 9 de outubro de 2010

A Vã Glória de Te Amar - Capitulo 2 - Parte 3


A pesada porteira e dona do apartamento onde Marta Reis vivia nestes últimos dias, assolou à porta da irmã e quase sem hesitar, invadiu a modesta residência, de carteira pequena e preta a tiracolo, evitando olhar a face enrugada da irmã.
De ar amargurado, Filomena, a dona da casa aproximou-se do sofá onde a irmã se sentara e arranjando a almofada já gasta, que em tempos lhe fora oferecida, sentou-se:
-Filomena, minha irmã, creio que o passado voltou para nos atormentar.
-Cruz credo, Laurinda. Depois de todo este tempo?
-Parece que sim, irmã. Tudo porque uma metediça, armada aos cágados está a meter o bedelho.
-Mas espera, explica-me o que se passa.
-Aluguei o quarto.
-O quarto?
-O quarto.
-Oh, porque fizes-te isso?
-Mana, aquilo não pode ficar eternamente parado. O que lá vai, lá vai. Já lá vão uns anos.
O olhar de Filomena mantinha-se fixo e pesado, pousado sobre o tampo castanho da pequena mesa de jantar, a seis passos das mulheres, mas a mente, essa, estava longe, estacada em anos anteriores, no tempo em que ela ainda sorria:
-A quem alugás-te?
-A uma mulher sozinha.
-Nova?
-Trintona, eu penso.
-Que lhe disses-te sobre o quarto?
-Oh nada. Absolutamente nada.
-Mas dizes que ela anda a meter o nariz?
-Sim. Veio com uma conversa esquisita, sobre o Vega.
-Oh meu Deus.
-Não te preocupes, mana. Ela não o conheceu.
-Então como ela soube?
-Parece que encontrou algo. Tenho de descobrir o que é.
Filomena levantou-se pesadamente e acenando negativamente a cabeça, retorquiu:
-Não vejo como tal possa ser possível. Eu tratei de tudo, fiz uma limpeza geral e asseguro-te que nada me escapou.
-Desculpa mana, mas alguma coisa deve ter escapadao. Acredita em mim, esta miúda não faz ideia de quem ele é.
-Mesmo assim teremos de ter cuidado.
-Mas mana, já lá vão mais de dez anos!
Irrompendo em lágrimas, a face amarela de Filomena, ganhou ainda mais uma expressão de maior dor, e voltando-se a sentar, deu-lhe a mão, como que procurando conforto, nos dedos frios e gordos da irmã:
-O tempo para mim deixou de correr, mana. Acordo e deito-me apensar nele, no seu sorriso, no seu charme! Ele foi o meu príncipe encantado e se na altura te tivesse dado ouvidos…
-Filomena, o amor é assim! Uma sucessão de imprevistos e equívocos. Um palpitar flamejante que nos conduz ao fim do raciocínio. Sei o quanto sofres, mas lamento não poder alterar o passado.
-Oh mana, assegura-te que essa gaja não vasculha muito, já me basta o infortúnio das memórias dos últimos dias!
A pesada senhora entendeu a hora da retirada, e erguendo-se como um general no activo, encarou a face de dor da irmã:
-Asseguro-te Filomena, que eu tratarei disso. O meu único problema é que o diabo da mulher raramente sai do quarto.
A irmã sorriu ao de leve, mostrando perfeitamente o esforço que tal actividade custava à sua face:
-Que pode ela fazer num quarto abandonado e vazio?
Como se tivesse sido apanhada de surpresa pela observação da irmã, a pesada senhora estacou abruptamente e fitou a irmã:
-Realmente. Ela não tem telefone, não tem telefone, não tem rádio. O que raio fica ela a fazer no quarto?

A poucos quilómetros dali, sentada de pernas cruzadas, imitando a estátua de um Buda dourado, Marta absorvia os minutos da sua solitária nova existência, a estudar os caracteres já gastos da tinta azul, outrora cuidadosamente inscritos, nas curtas folhas do diário:
” O Verão havia chegado em todo o seu esplendor. Era o meu primeiro Verão nesta Invicta cidade e secretamente o meu coração palpitava pelo calor e fervôr dos primeiros perfumes da estação.
Havia, por esta altura, adquirido na baixa Portuense um fino fatocinzento e através de um pouco de regateio para com um lojista de coração embrutecido, uns sapatos negros de verniz.
Já tinha o meu ordenado regular, bem como alguma atenção de Glória.
Lamento contudo dizer, que há medida que os meus textos iam sendo publicados, mais distante e nervoso Morais ficava. Não própriamente pelo conteudo dos ditos, mas porque inexplicávelmente os meus textos eram, regra geral os primeiros a serem analisados pela Glória e não raras vezes, devo confessar, rfecebia elogios nas reuniões de fim de dia no seu escritório.
Talvez me achassem na altura um simplório, vindo de nenhures , com a mania que era “gente grande”, mas a verdade é que a constante presença de Glória, me tornava de facto grande, senão mesmo enorme.
Vivia um misto de êxtase profissional e uma fase rica de afirmação pessoal.
A cidade, depois de a conhecer bem, abria-se perante os aventureiros. E o sotaque? Ah, o divino sotaque de Glória, acentuava em mim a vontade de berrar ao seu ouvido. De lhe recitar amiúde poemas de Pessoa, de Florbela Espanca. De lhe contar a louca ” Odisseia” de Homero.
Oh, como eram felizes esses dias. Os primeiros dias de Verão! Os dias de saia branca e voadora, no labirintico mundo das secretárias de inox.
Percebia, nesses dias, que Glória mudara o perfume, para uma fragância mais doce, mais suave. Um convite ao meu nariz delicado e apaixonado pelos novos odores.
Não tendo contudo a coragem de falar directamente com a minha superiora e secretamente a minha Diva, limitáva-me a concentrar todos os meus esforços, toda a minha alma, nos meus escritos.
Um dia, um mísero dia, ela chegaria sorridente à minha beira, talvez com sorte se sentaria na esquina da minha secretária, e eu teria coragem de não só elaborar um diálogo consentâneo com a sua importância, enquanto mulher culta, bem como sentir aquela saia, perto de mim, e o joelho surgir como por magia, oferecendo-me a mim e só a mim, a fineza da sua pele e o tom unico e curvilineo da sua coxa.
Mas isso sou eu a divagar! Na verdade, creio bem, raramente olhei Glória com ar de desejo ou de interesse. Falo óbviamente do interesse carnal, animal. Não era consentâneo para com uma dama naquela posição, eu me perder em devaneios e baixezas viris, próprias um pedreiro ou um ser sem instrução.
Não, caro leitor. Não me interprete mal, não pretendo de forma alguma degredir profissões ou atribuir Status a nós, os jornalistas. Falo apenas com a convicção de que a minha deusa da felicidade, era uma mulher , que acreditava eu, precisava de alimento para a Alma e não para o corpo.
Inacreditavelmente dei por mim, a relêr os clássicos, a decorar excertos ou frases célebres, não para serem usados como citações no jornal, mas para afastar de mim, o rótulo de homem do interior.
Imaginava inacreditavelmente, talvez motivado pelos primeiros raios solares após tanta chuva, longas conversas no banco do jardim,entre baforadas do seu cigarro e sorrisos da minha loucra. Onde eu estaria de braço dado, com ela, enternecidos pelo sol.
Como a verdade iria ser fantasmagóricamente cruel, para este pobre sonhador.”
Marta fechou o caderno e acendeu um cigarro. Nunca percebera a que se devia tal obcessão, por parte de Vega, mas secretamente, enquanto o isqueiro Bic, fazia a sua magia e iluminava numa pequena chama azulada a ponta do seu cigarro, ela sonhava com alguem assim, agora, ali.
Alguém a quem pudesse contar tudo. Alguém a quem pudesse desabafar, mesmo sobre autores e livros.
Oh, como ela entendia a divagação de Vega. Como tudo é bem mais sombrio, quando já não esperamos surpresas felizes da vida!
Um dia, pensou, iria igualmente partilhar com alguem, talvez um desconhecido, esta sua experiência. Nem que fosse em forma de diário.
Sorriu ante a ideia e fechando os olhos, tentou imaginar Vega no fato cinzento, de sapatos de verniz, de mão dada com ela no parque. Como seria ele?
Sonhadoramente imaginou-o e após ter uma imagem “virtual” de Vega, sorriu confortávelmente e fechou o diário, arrumando-o na carteira. Automáticamente, ergeu-se e contemplou pensativa a chuva que voltava a cair na rua.
Como será o Verão, pensou?

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