quarta-feira, 2 de setembro de 2015

A Saga de Arkhan - Pretorius - Capítulo 2



Renasceste porém, numa esperança de criança inocente,
todos os dias, quando a madrugada governa a ilusão, tão terna...
Ninguém pertence a ninguém...
Porém o Amor faz-nos pertença, mesmo que não mereça...

Inês Dunas :" Para além da Morte"

http://librisscriptaest.blogspot.pt/2015/08/para-alem-da-morte.html


Maleena


Dizem que a idade é uma caminhada numa comprida ponte de pedra, carregada de tempo incerto, com as suas nuvens cinzentas, os seus momentos de sol, as chuvadas fortes de Verão e o frio gélido do Inverno de Orgut. Se no início da caminhada pela ponte, tudo parece fácil, belo e até esplendoroso, à medida que avançamos o encanto morre e o que era novidade traduzida em risos de felicidade e aventura, torna-se gradualmente penoso. A meio da ponte, para os felizardos a quem Morr, oferecia o sopro mágico da vida, começavam a aperceber-se das fissuras da ponte, das marcas dos tempos e estações do ano que cíclicamente passavam e dos variados defeitos de construção que até então ignoraram. A caminhada torna-se então não mais que uma obrigação, ou uma luta desigual contra tudo e contra todos, em que apenas conta o objectivo final a que tais caminhantes se propuseram. Depois, mesmo no final da ponte, quando as forças já eram poucas, os passos tornados incertos e a visão gasta, os que ainda restarem recordam-se das intempéries passadas, dos sacrifícios, dos risos e olhares perdidos e descobrem que bem feitas as contas, até valeu a pena conhecer o final da ponte.
Sentada na poltrona de pele de cavalo, no canto do seu majestoso quarto a rainha pousou delicadamente a sua pena de ganso, com cuidado para que a mistura de tinta não resvalasse para o pergaminho e destruísse os seus pensamentos, lavrados para a posterioridade e suspirou de desespero. Dona de um raciocínio invulgar, extremamente culta até mesmo para os padrões de Orgut, Maleena "a rainha criança", como os seus súbditos a tratavam em segredo, só se apercebeu da importância dos ensinamentos dos Mosteirais, quando intercedeu junto do rei Bradus, seu senhor e marido, para acolher tais pensadores e copistas no Império. A rainha de descendência Utteniana acreditava nos antigos ensinamentos do seu povo e no poder intemporal da palavra e foi com esse argumento que convenceu o soberano e posteriormente o Mosteiral residente do castelo a lhe ensinar os segredos da tinta e o prazer da escrita.
Maleena, filha de Traius, o chefe do clã de Utter, à data de seu nascimento percebeu desde cedo que seria entregue em casamento a Bradus, quando completasse treze anos e assim unificar os clãs rivais.Tal facto lhe fora transmitido pelo seu saudoso pai, esse sim um homem imortal, um líder nato e a pessoa ideal para cumprir o sonho de um império.
Só lamentava que um ano depois de ter entrado pela primeira vez na cama de Bradus, o seu pai tivesse sido assasinado por salteadores Citeres, pois tinha a certeza que ele ficaria encantado com o império que ela dera nestes vinte anos ao seu esposo.
Não tinha sido tarefa fácil e de certa forma sentira os anos passarem e acomularem-se na sua pele, nos seus cabelos côr de oiro, a ficarem esbranquiçados, nos seus seios outrora firmes e nas rugas rasgadas pelas consumições do império. Maleena olhou atentamente as costas das suas mãos, concluindo em pensamento que Já fora uma bela flor e hoje não passava de um ramo quase caído, sem beleza ou vitalidade. Faltava-lhe a rega de um amor intenso, o ardor de uma paixão que lhe devolvesse as folhas da alegria e no entanto em segredo ela já tinha esses cuidados, embora algo recente.
Ao ouvir o trotar de um cavalo familiar, a rainha respirou fundo e acenando a uma das suas aias:
-Preciso  apanhar um pouco de ar. O cheiro da tinta enjoa-me - mentiu a rainha apressadamente.
-Certamente majestade.- Concordou a aia escondendo um sorriso de cumplicidade-  Não deveis respirar tais vapores infernais. Nenhuma senhora deve ser exposta a tais tormentos.
A rainha aguardou que a jovem aia a ajudasse a levantar, evitando contudo mostrar qualquer sinal de ansiedade e calmamente acercou-se da janela ainda a tempo de ver o jovem general Brunnus descer do seu alazão branco. Como era belo o jovem General, com os seus cabelos castanhos sempre compridos e em desalinho, o seu bigode corretamente aparado e o seu porte atlético. Maleena correra um risco enorme em propor ao Imperador a nomeação de Brunnus para general, mas tinha sido um risco calculado, porque sendo ele general, mais perto ficaria do castelo e mais fácil seria o acesso dele ao seu regaço e aos seus lábios.
O som abafado de nós dos dedos a estalar na porta, arrancou Maleena das suas recordações amorosas e assumindo a sua pose de rainha, voltou para o seu cadeirão onde ordenou a entrada nos seus aposentos do jovem príncipe Julius.
Julius era o único filho que dera a Bradus e era por direito o herdeiro do trono de Orgut e acreditava ela, imperador de toda a Arkhan, embora sempre sob o seu comando. Desde o seu nascimento, que ela o instruía para a altura em que assumisse responsabilidades,cultivando-lhe o gosto pela arte da diplomacia, pelo ofício da governação do império e colocara-o sob a alçada de Brunnus, para que oficialmente este lhe transmitisse os segredos da espada  e estratégias militares e paralelamente criar laço de afinidade entre eles. Claro que o imperador poderia ter tido algum papel na educação do jovem príncipe, mas a rainha sabia que as capacidades de Bradus nem na cama eram representativas de argúcia e destreza e o futuro, na ideia dela, não reservara qualquer lugar a Bradus.
O seu povo podia zombar dela nas suas costas, podia troçar da sua paixão pela escrita e pelas artes, podia até mesmo criticar a sua paixão pela equitação e pelas suas fugas constantes do castelo onde se perdia tardes inteiras, percorrendo anónimamente a cavalo os parcos campos de trigo de Utter, as margens do rio Nvoor de Orgut, os fracos pomares envelhecidos do reino ou até percorrer a pé as ruínas do seu antigo clã. No entanto o que o povo desconhecia é que era ela o cérebro de todo o Império. Bradus tinha um sonho único de um Império majestoso e ela tinha a capacidade de o concretizar. O Imperador dava a cara e apresentava inúmeros projectos sobre conquistas e batalhas, mas no final a ùltima palavra era dela. O seu único problema, enquanto raínha era o de odiar Orgut, mais concretamente o seu povo e o seu imperador. Revoltava-a o cheiro de Bradus na cama,o modo como a despia, como a tocava e como a penetrava diante das suas aias, por insistir em ter audiência e as constantes poses teatrais que assumia a propósito de tudo, para além da gritante incapacidade dele para os prazeres da escrita e da leitura. Nunca o vira a ler algum pergaminho ou a consultar qualquer documento, mas recordava-se bem de como ele zombara dos Mosteirais e de como ele ainda satirizava os usos e costumes do povo de Utter, esquecendo-se que era igualmente o seu povo.
No fundo ela não escolhera ser governante de Orgut, nem o reino a escolhera para líder. Fora escolhida para a cama de um rei, por ele usada e abusada contínuamente noite após noite e gozada pela arraia miúda. foi-se apercebendo contudo do poder que gradualmente Bradus lhe dava e percebeu que quanto mais o satisfazia na cama, mais poder de decisão obtinha. Em segredo dedicou-se ao estudo de estratégias militares, acompanhou igualmente em segredo a disposição das forças no terreno e através dos Mosteirais teve acesso a diversos pergaminhos dos reinos de Arkhan e com o sonho do marido, viu a oportunidade para transformar o reino em Império e em breve mandaria Bradus   para a batalha e com sorte alguma flecha o derrubaria e ficaria dona e senhora de Arkhan, manipulando o jovem Julius.
Porém, apesar de todos os seus esforços, Julius saíra quase igual ao seu pai. As mesmas feições, os mesmos trejeitos de rosto, as mesmas paixões pelas futilidades do império, como caçadas, bailes e vinho e o mesmo desdém pelos Mosteirais. A diferença residia contudo na dificuldade dele em acatar ordens e na sua constante preocupação com o seu povo. Assim ao contrário do sucesso do Império, Julius era o seu empreendimento mal-sucedido e no entanto ela era mãe e jamais o odiaria como odiava o seu pai:
-O General Vill regressou da sua missão! - Proferiu o jovem esguio num tom seco.
-O Povo aguardava-o? - Inquiriu Maleena escondendo um sorriso diante da pose formal calculada do filho.
-Em menor número que o usual! O nosso Imperador...
-Seu pai....
-Sim-apressou-se a confirmar o jovem perdendo momentaneamente a pose estudada- O meu pai não se encontrava presente para o receber.
-Bem sabeis que a gestão das coisas do império lhe roubam tempo. -Assegurou a rainha consciente de alguma desilusão de Julius.
-O Imperador...Perdão, o meu pai está em reunião com Brunnus e Vill...Acaso sabeis o motivo? - Sondou argutamente Julius.
-Tenho uma leve ideia. Contudo não deveis ter curiosidade sobre os motivos de reuniões de seu pai. 
-Conheço bem o meu pai e sei que para estar reunido com os seus dois generais mais conceituados do império, só pode significar outra missão, outra batalha, outra conquista. Que reino será atacado agora? Até quando durará esta mania e este sonho?
-Em breve tudo estará acabado e em toda a Arkhan balançará ao vento, o estandarte do nosso império...
-E entretanto o nosso povo geme de fome ...
-Meu caro príncipe, ficai a saber que não há fome que não dê em fartura.
O jovem fitou apreensivamente o rosto sempre belo da mãe e a custo asseverou:
-Compreendo majestade, mas fico sempre sem saber quem será o contemplado da fartura e a quem será morta essa fome.
A rainha mirou-o apreensiva pelo canto do olho. Maleena sabia que Julius, tal como grande parte do seu povo, não aprovava o plano de extensão do império. De certa forma ela esforçava-se diáriamente por ignorar os queixumes de fome no reino, da falta de cereais desviada para a alimentação do exército, da falta de soberanos de ouro e prata, derretidos e usados em armamento e da enorme indiferença  por parte da coroa para com as necessidades do seu povo. Para ela, nada disso era particularmente grave e a última coisa que necessitava neste momento era ter um futuro líder a contestar as suas acções.
Nervosamente deu ordens ao príncipe para se retirar e constatou com algum receio que Julius podia ser mais um problema e em  Orgutt ela aprendera como resolver os problemas.







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