terça-feira, 5 de julho de 2016

Poderosa Perversão - Capítulo 4






Por fora sou um carnaval de raiva,
uma aurora boreal,
fogo de artificio em dia de comicio.
Mas por dentro somos só nós e a voz sossega.

Inês Dunas : Sentido Obrigatório 

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Hora zero




A memória era um manto de fragmentos, pequenas partículas em suspenso no limbo da mente, aguardando que ela voltasse à plena consciência das suas capacidades, para só então poderem fazer parte de um todo que ela organizaria aos poucos, consoante a sua habilidade para puzzles mentais.
Deitada na cama de hospital, recuperava devagar os sentidos, mexendo muito lentamente os lábios, depois os dedos das mãos e posteriormente a ponta dos dedos dos pés. Acordava agora, não no seu ritmo habitual, mas num modo demasiado lento e de certa forma isso constrangia-a.
Então os pequenos fragmentos da memória deslizaram sob os seus olhos fechados, ainda sem som. Eram apenas imagens confusas, como se alguém estivesse a projectar um filme numa parede cheia de cores. Não sabia, na sua mente, o que era real ou não. Não conseguia sequer atribuir qualquer som, cheiro ou sentimento às imagens que desfilavam para sua contemplação e com um grito de raiva, abriu os olhos:
-Calma, a enfermeira já vem! - Respondeu o jovem alarmado, pelo rápido acordar dela.
-Tu, outra vez?
-Acredita que não foi por gosto....
-Mas afinal que faço aqui?
-Mas então não te lembras? Acabei de te contar tudo na ambulância...Quer dizer, tudo não. Apenas aquilo que vi. Mas tu adormeceste e eu...
-Adormeci? - Inquiriu Sara nervosamente.
-Pois não sei. Se calhar desmaiaste, mas a tua mãe está a chegar e ...
-A minha mãe? Merda, isto está a ficar cada vez melhor. - Suspirou ela ao olhar para a agulha que balançava no braço ao sabor dos seus movimentos desesperados. 
Rafael respirou fundo, pousou de uma forma metódica os cotovelos sobre os seus joelhos e não sabendo bem o que esperar, continuou:
-Segundo a médica que te observou parece que não tens nada partido, apenas algumas escoriações nos braços e costas, alguns cortes aqui e ali- apontou ele distraidamente para a zona dos seios e barriga-Não te preocupes que eu não olhei e...Ah sim, e alguns cortes simétricos na coxa direita, mas isso parece não ter a ver com o vidro propriamente dito e....- Por uns segundos ele contemplou a face irada da jovem, e continuou nervosamente.- Acho que agora falei demais!
Sara fulminou o jovem com um olhar agressivo e sem contemplações, sentindo o sangue a ferver-lhe no corpo, gritou:
-Mas que diabo de lata a tua...Mas que é isto? Agora és porta voz da médica?
-Não, eu só ouvi e...
A jovem acenou a cabeça compreensivamente como se de súbito a raiva tivesse cessado e perante a perplexidade dele, sentou-se calmamente na borda da cama, respirou fundo e indagou serenamente:
-Isto é um Hospital ou uma clínica?
-O Hospital evidentemente! Não costumam levar as urgências para as clínicas.
-Sim, mas não era suposto estar num sítio com outras macas e uma algazarra infernal?
-Ah...- O jovem loiro escolheu as palavras de um modo ponderado- A minha mãe é médica aqui, aliás foi ela quem te observou por isso sei...Assim que ela deu um "jeito" de repousares um pouco aqui.
-Mas como é que adormeci?
-Não sei, talvez ela te tenha dado um sedativo!
O olhar de revolta voltava aos olhos brilhantes de Sara:
-Acredita que estou a inventar. Não acho que precises . - Apressou-se ele a esclarecer.
-Bem, - O tom de voz de raiva voltava à voz dela- Se compreendi, apanhei uma coça das velhas, atravessei um vidro, devo ter para aí uns cem processos disciplinares, um professor raivoso, a minha mãe vem a caminho e ainda vou ter que levar com sermões da tua, está visto...
-Um dia perfeito, não? - O adolescente tentava desesperadamente o humor fácil.
Sara levantou-se num ápice arrancando a gaze e a seringa do braço:
-Não estou para isto, vou dar de frosques...
-Não podes! 
-Posso.
-Mas espera pela minha mãe ela pode te ajudar
-Não dá!
Ele meteu-se à frente dela, barrando-lhe o caminho, embora não de uma forma ameaçadora:
-Sara, tudo se resolverá. Darei um jeito!
-Tu?
-Nós. Acredita em mim!
-Acreditar em ti?
-Sim, sei que é difícil, mas resolveremos isto.
Ela sorriu e sem desviar o olhar da porta avançou:
-Espera, escuta...
Inadvertidamente a mão dele agarrou o braço dela, num gesto irreflectido que te e o condão de a imobilizar por uns instantes.
No entanto apesar de ter sido  um reflexo, teve  ao mesmo tempo com a vivacidade própria de quem cumpria ordens estranhas do coração, inaudível aos comuns mortais.
Os olhos de Sara estacaram na mão dele, pálida e sôfrega sobre o seu braço fino, detiveram-se de seguida nos seus lábios grossos  e com plena consciência dos seus actos, aproximou-se da face dele , pousou delicadamente a cabeça sobre o seu ombro direito e repentinamente levou o calcanhar ao pé do jovem, pisando-o violentamente, rodou sobre si, abriu a porta e fechou-a por fora, desaparecendo de seguida, rapidamente pelo corredor, esperando que a sua roupa ensanguentada não chamasse demasiadamente à atenção. 
Sem saber como, de repente a sua vida estava virada do avesso e ela, sabia-o no seu íntimo, não estava preparada. Viria aí uma tempestade e mais do que nunca, sabia que se teria de manter focada e livre.
Sara olhou uma ultima vez para trás. Não desejava mal a Rafael e lá no seu íntimo até estava surpresa não só pelo seu surgimento na sua vida, mas igualmente pela vontade de a ajudar. Era, pensou ela, quando atingia a porta de saída, a unica pessoa que até agora mostrou alguma vontade de ajudar e isso assustava-a mas ao mesmo tempo, proporcionava-lhe um sorriso tímido, que exibia agora ao entrar no primeiro taxi que viu livre.
Seguiria para casa e dali pagaria o taxi e arranjaria dinheiro. Tinha muitas coisas a fazer e a falta de tempo para as realizar começava agora. Se havia uma hora zero, esta era a hora, este era o momento.
Sara podia ter muitos defeitos, mas percebera muito bem que o professor já a tinha topado há muito tempo e ter usado o início de uma das composições de alguém que provavelmente ele tão bem conhecera e ameaçara não tinha sido uma ideia inteligente, mas o que tinha descoberto sobre o professor, tinha-lhe criado as suspeitas necessárias  e na falta de provas concretas, precisava agora de ver a reacção dele. O acesso de raiva dele, só mostra o cuidado que de futuro ela tinha de ter, porque certamente ele não a iria deixar em paz.

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