domingo, 28 de agosto de 2016

A Saga de Arkhan - Livro 2 - Ischtfall - Capítulo 9





Tudo o que temos é aquilo que o corpo sabe,
com a mesma descartabilidade e efemeridade da pele,
 que nos veste a alma e se enxovalha com a idade... 

Inês Dunas: Ao que o corpo sabe


O forasteiro apresenta-se ....




A expressão heróica tinha-se esvaziado por completo na mente do forasteiro que em passos curtos acompanhava a criança, mudo e perdido nos seus tenebrosos  pensamentos.
Rasmen não era agora um homem tranquilo, nem tão pouco de pensamentos leves. Se se pudesse desenhar uma cor dos seus pensamentos seria certamente a carvão bem negro. Fugira rapidamente da sua cidade natal quando esta tremeu sob a fúria do ataque de Orgutt e ao invés de fugir para norte, como refugiado de guerra, como um mero civil cometera a loucura, segundo a sua crença de rumar a Ischtfall e pior ainda de se apresentar como membro do exército de Borren.
Como resultado, o rei daquele reino,  Leopoldo II havia-o recrutado, em nome da boa e respeitosa aliança que Ischtfall assinara com Borren e agora só tinha uma solução possível. Uma nova fuga, desta feita mais bem pensada ou arquitectada pela calada da noite antes que as coisas se complicassem ainda mais para si e para o jovem que corria em passos de pardal à sua frente.
Mas a sua fuga revestia-se de dificuldades acrescidas, uma vez que durante o dia, não poderia passar despercebido pelos guardas nos portões , teria de ser à noite o que acrescia ainda mais a missão de ser bem sucedido dado não saber os horários das rondas dos patrulheiros, nem quando há o render dos guardas nos portões não poderia arriscar. Teria forçosamente de arranjar um modo de escalar as muralhas, silenciosamente e em segurança o que com uma criança se tornava cada vez mais complicado. Claro que ele não era prisioneiro em Ischtfall e poderia voltar as costas e simplesmente abandonar o reino sem dar cavaco a ninguém, mas certamente por essa altura todos os soldados do reino estariam informados do seu novo posto e correriam a avisar Leopoldo II que no mínimo o perseguiria e o prenderia por traição ou espionagem ou se tivesse mesmo azar pelas duas cosias juntas.
Rasmen passou a dedicar então especial atenção ao que ia presenciando, procurando um ponto fraco na vigilância do reino, mas depressa se apercebia que era de facto uma tarefa impossível.. 
Com efeito, dentro das muralhas que circundavam o reino era difícil para um forasteiro ficar indiferente a Ischtfall. As suas ruas estreitas, de terra batida, as rústicas habitações germinadas  de madeira da parte baixa do reino, logo a seguir ao portão principal, construídas todas da mesma maneira e em fila obrigatória guiavam um estranho por labirínticos corredores , em que todas as casas eram absolutamente iguais e o cheiro nauseabundo das latrinas despejadas nas traseiras, incomodavam o oficial solenemente, habituado que estava ao fosso dos dejectos construído propositadamente fora da cidade de Borren. Era melhor pagar aos latrineiros para que recolhessem a porcaria e a despejassem no fosso, do que atirar para as traseiras de casa. Até então o reino não estava a oferecer ao ex-militar de Borren qualquer tentativa de sedução. O cheiro perseguiu o homem e a criança que o acompanhava até ambos desembocarem no centro do reino e começarem a surgir as casas de pedra refinada, com brasões e de grandes dimensões, suficientemente longe dos casebres de madeira, mas igualmente perto de todo o comércio que amíude se ia fazendo. Na parte baixa, vendia-se um pouco de tudo e com alguma naturalidade as moedas circulavam, embora o prato forte do negócio residisse nas duas tabernas evitadas pelos Nobres e frequentadas por todo o tipo de gente, sendo sempre o ponto de encontro para a má-língua ou para um divertido jogo de cartas depois do trabalho.
Para ele contudo a taberna que lhe haviam indicado parecia-lhe a pior de Arkhan, talvez por na sua cidade natal não existirem tabernas e a custo entrou evitando os olhares inquisidores dos que lá estavam. Mensull, o miúdo aguardava impaciente à porta, desconfiado enquanto se acercava do taberneiro:
-Saudações. Contaram-me que existe um quarto para alugar e que era consigo que trataria. - Principiou a explicar o forasteiro.
-Pode até ser. Mas não é de graça. - Avisou o sujo taberneiro enquanto estudava o visitante pelo canto do olho.
-Compreendo. Realmente irei necessitar de um quarto!
-Por quanto tempo e para quantos?
-Por alguns dias, não posso precisar quantos ao certo. Um adulto e uma criança.
O taberneiro permaneceu uns segundos calado e absorto na figura do forasteiro:
-Porque carga de água viajais com uma criança?
-Eu não viajo! Eu vim servir o rei Leopoldo II e o exército de Ischtfall. - Confidenciou Rasmen à laia de aviso.
Uma gargalhada irrompeu instantaneamente nos presentes, cuidando que o forasteiro fosse cómico. depois de alguns risos soltos, o taberneiro voltou à carga:
-Agora a sério, queira fazer o favor de responder. Porque viaja com uma criança neste Mundo tão violento?
O forasteiro sentiu os olhares inquisidores de todos os presentes sobre si, como flechas ardentes a espetarem-lhe no dorso e conhecedor da arrogância das gentes de Ischtfall, sentiu que deveria forçar a barra e espicaçar o orgulho patriótico daquela gente:
-É como vos digo,,- Principiou ele pausadamente- Parece que neste reino não têm pessoal competente. Não falo como é lógico de gente vulgar e de mesteres, que carpinteiros e ferreiros os há em toda a parte, mas de gente que tenha dois dedos de testa e um intelecto para comandar homens.
As gargalhadas cessaram como por magia e os sorrisos de troça desapareceram do rosto de todos os presentes. Rasmen estava a principiar a ficar deliciado com a sua própria actuação:
-Mas parece, ó nobre gente deste reino, que tereis um rei à altura, ciente das vossas parcas competências e sem receio de solicitar socorro a Borren.
A menção ao nome da cidade-fortificada outrora bem rival, aqueceu ainda mais o espírito dos ouvintes:
-Mas nada temeis! Eu, Jorgen Rasmen vosso novo general e agora servidor de Leopoldo II, cá estou para defender as vossas casas primitivas e os vossos parcos recursos, em nome de um bem maior.
As mãos dos presentes, num gesto autónomo e parecendo ensaiado subiam até à cintura ou até ás botas, buscando o punho da espada ou navalha, mas o taberneiro assobiou baixinho em jeito de troça e numa voz arrastada inquiriu:
-Dizei-me ó grande general, sois vós que ensaiais o vosso discurso de vento e ar estragado, ou pedis ao pirralho que vos dite?
De súbito novo coro de gargalhadas e o ar ameaçador voltou a desanuviar da face dos presentes:
Rasmen retirou uma caneca de um líquido doirado da mão do homem mais próximo, beberricou dois goles mal bebidos e retomou, indiferente:
-Não sei se sabeis mas todos os exércitos de Orgutt dirigem-se a Ischtfall, embora eu acredite que igualmente o senhor da Guerra possa aparecer aqui na mesma altura e então nessa altura não haverá tempo algum para discursos.
Os sorrisos desapareciam de novo e o silêncio sepulcral voltava, tendo um sujeito magro e com ar de ensonado, lançando a questão:
-Mas então, com tantos inimigos a vir até cá e escolhem logo este palito para nos defender? Decerto que foi equívoco! Dizei-me, o rei realmente o conhece ou requisitou a sua presença por procuração?
- Perdão cavalheiro, mas quem sois vós para avaliar um vosso oficial com essa leviandade?
-Sou apenas um homem de Ischtfall, ciente do que é uma espada e indiferente a títulos ou nomes.
-Falais bem, acaso lutais da mesma forma?- Respondeu irritado Rasmen.
Dois homens entravam na taberna envergando mantos com capuz, quando o sujeito com ar ensonado ergueu-se e aproximou-se disposto a enfrentar o forasteiro. Mas o taberneiro foi bem mais rápido, colocando-se rapidamente entre os dois homens:
-Aqui não! Já tive problemas com os guardas do rei.
-Os guardas do rei nada farão! - Respondeu um dos homens recentemente entrado.
Num olhar rápido o taberneiro destingiu as divisas de nobreza mostradas por descuido:
-Mesmo assim, rogo-vos Timmur que não vos desgraceis. Se este homem é efectivamente general...
-General? Posso vos garantir que esse homem é um refugiado de Borren. Não sei se estais ao corrente, mas Borren foi conquistada por Orgutt.
-Pois então mentis! - Gritou o sujeito antes ensonado
Rasmen recuou dois passos e antes que qualquer um dos presentes reagisse, agarrou a caneca de estanho mal trabalhado, do seu parceiro do balcão, aplicando uma sucessão de três golpes na cabeça, nariz e mão do taberneiro, atirando após isso, prontamente a caneca na direcção do sujeito que o confrontara e de seguida como um felino, saltou o balcão para o interior, desembainhando a espada.
Mensull que se apercebera da algazarra entrava a toda a velocidade para a taberna, aplicando pontapés e estalos aos presentes à medida que avançava também ele para o interior do balcão.
Timmur, o sujeito ensonado que provocara toda esta discórdia e guarda de honra do rei, desembainhou também ele a espada e saltou para o balcão, gritando:
-Por Leopoldo II, não vos permitirei que insultais os meus amigos e a boa gente deste reino. Haveis passado das marcas ao mentires. 
-Pareceis muito ofendido para quem passa os dias na Taberna!
-Não vos admito! - O timbre da voz já não era de irritação, mas de fúria.
Rasmen evitou o primeiro ataque vertical da lâmina de Timmur  e recuperando o equilíbrio contra-atacou com a mão livre, aplicando um golpe no calcanhar de Timmur fazendo-o desequilibrar sobre o balcão e baixar a guarda, para então Mensull atirar uma garrafa de estanho à cara do sujeito atirando-o para o chão.
Com o taberneiro e com Timmur fora da luta , Rasmen encolhia-se a evitar os golpes de dois dos presentes que já se juntavam à contenda e antes da entrada na luta de mais dois, o forasteiro saiu do balcão, usando o tampo de uma pequena mesa como escudo, enquanto o miudo mordia e arranhava quem visse pela frente. Contudo, dado o pouco espaço para lutar, Rasmen abandonara a espada concentrando-se na defesa dos golpes de navalha que caíam de várias direcções. Ele havia treinado vezes sem conta combates corpo- a - corpo, mas em outros espaços e com maior margem de manobra e ali, quase encostado à parede, começavam a faltar-lhe opções de fuga ou de desvio, até que uma voz de trovão se fez ouvir:
-Mas por todos os Deuses de Arkhan, que se passa aqui?
Todos os olhares se voltaram para a figura imponente estacada diante da entrada da Taberna.
Timmur pareceu ter sido o primeiro a reconhecer e apressou-se a prestar a devida vénia, intercedendo a favor dos presentes:
-Meu rei, majestade.Lamento toda esta confusão, mas não é o que pensais!
-Ai não?
-Não meu rei. Não se trata de uma escaramuça sem sentido, mas com um propósito firme de castigar um mentiroso.
-Explicai! - Ordenou o rei, conhecedor das muitas escaramuças provocadas por Timmur quando bebia demais.
-Este cavalheiro, apresentou-se como general de Ischtfall - Elucidou sem disfarçar um sorriso sarcástico-E é apenas um exilado de uma cidade.
-Ai sim? - Por alguma razão estranha a Timmur o rei parecia igualmente divertido.
-Verdade meu senhor. - Apressou-se a comprovar o taberneiro, receoso que o rei mandasse fechar a taberna.
O rei entrou, sozinho, para grande admiração dos presentes, sem qualquer guarda de honra e avançou obstinado com as esporas a bater arduamente no pavimento, sem reparar nos dois encarapuçados encolhidos a um canto:
-E vós, que dizeis de tudo isto? - Inquiriu Leopoldo II dirigindo-se ao forasteiro.
-Não foi nada de especial alteza. Apenas algum exagero nas festividades destes meus amigos pela minha nomeação a general.- Brincou Rasmen.
-Muito bem. Agora que já confraternizaram, solicito a vossa presença no palácio imediatamente.
-Mas majestade, preciso de por a pobre criança a descansar.
Nisto o rei contemplou a figura despenteada e desesperada de Mensull e sorrindo rematou:
-Não tem muito aspecto de escudeiro, nem tão pouco de vosso filho. Dizei-me, que planos tendes para esta criatura?
-Planos majestade?
-Claro. Se o trazeis para Ischtfall, certamente que esperais que se torne membro do nosso reino.
-Não tinha pensado nisso...- Respondeu Rasmen desesperado por encontrar uma fuga.
-Meus caros, peço desculpa de interromper a vossa festa, mas eu e o vosso novo general temos de conversar.
Sem apresentarem qualquer objecção, os presentes viram os dois homens e a criança retirarem-se e já algo longe dali, o rei adiantou:
-Soube que poderia passar por problemas quando me informaram que vos foi dado o endereço desta taberna.
-Realmente...- Respondeu o oficial contrariado por o rei ter trazido mais um cavalo.
-Mas realmente preciso de vós. Deixai a criança no palácio, ela ficará bem entregue e venha aqui ter junto desta árvore dentro de uma hora.
-Mas onde iremos Majestade?
-Às montanhas! Mas cuidai que é segredo.
Rasmen contemplou o vulto da montanha encoberto por raios de sol e por momentos sentiu uns arrepios estranhos na nuca. Já tinha ouvido falar da Montanha e das suas gentes e o que tinha ouvido não era de todo agradável.
Num suspiro o oficial rumou ao palácio pensando em como podia o dia piorar ainda mais.






Sem comentários:

Enviar um comentário