domingo, 1 de outubro de 2017

A Saga de Arkhan - Livro 2 - Ischtfall - Capítulo 13


Um dia morreremos porque desaprendemos a vida,
seremos a espécie extinta pelo desinteresse...
A evolução é apenas uma jaula maior e com menos ar,
que não nos permite pensar...

Inês Dunas : Symphony of Distruction



A REUNIÃO


As nuvens percorriam o manto azul celestial tapando-o ao de leve, como um lençol de linho suave e macio, deixando no entanto, como se de um acordo tácito se tratasse, aqui e ali, certos espaços para o sol poder espreitar e sorrir sobre a Cittadel.
Perto do cimo Este da Montanha a Tribo aproximava-se dos forasteiros numa desorganização casual, própria de quem não está habituada a receber visitas.
A situação não era para menos, pois tanto quanto Saemon, o líder da Tribo se poderia lembrar, nunca antes a Cittadel recebera a visita de um líder, muito menos um rei de Ischtfall e na mente formada do responsável máximo da Tribo, isso só poderia significar problemas.
Sem grandes movimentos formais ou de cortesia, Leopoldo II e o seu general foram conduzidos para uma espécie de tenda, embora não fosse de tecido, mas de barro tosco e madeira e parecia ao rei forasteiro que toda a Tribo queria entrar e partilhar ideias e receios com ele.
Saemon, na sua posse de guerreiro-líder orientou a guarda do espaço para que só os anciões e ele estivessem presentes com os forasteiros e carregando um cachimbo de espiga de milho com folhas verdes, aguardou pacientemente que a excitação abrandasse para dar a palavra ao soberano à sua frente:
-Como foi anunciado há momentos, Borren caiu e outras cidades-fortificadas tiveram o mesmo destino. Orgutt está em guerra, embora as informações que nos cheguem sejam contrárias e antagónicas, temos a dúvida se não será o príncipe a preparar o seu reino, talvez numa amostra de valentia  ou então o rei ficou doido.
-Seja como for, a paz morreu...- Sentenciou Saemon de olhos fixos no cachimbo
-Correcto. Tememos que a loucura de Orgutt chegue ao nosso reino e à vossa Montanha, pois não tenham dúvidas de que chegará.
-Para que queria Orgutt a Montanha ? - Sondou nervosamente o líder da conferência da Tribo
Leopoldo II estudou por momentos a cara enrugada e a tez pálida de Miorr , o ancião mais idoso da Tribo e assegurando-se de que não havia a mais fina ponta de sátira na sua afirmação retorquiu:
-Porque não haveria de querer? Qualquer réstia de liberdade, mesmo a do vosso povo seria uma ameaça à supremacia bélica que querem instituir.
Saemon percebeu que o rei sabia mais do que dissera e com cuidado, contornou a questão:
-A questão não é a sobrevivência da nossa Tribo, mas saber o que pretende Ischtfall  fazer quanto isso?
-Como assim? - Inquiriu Leopoldo II nervosamente.
-Até hoje, Ischtfall e mais concretamente o vosso pai só têm ignorado o nosso povo. Fomos escravos às vossas ordens, servos ocasionais explorados em condições precárias enquanto a vossa muralha crescia. Passamos fome, sofremos doenças, vimos partir muitos dos nossos para o reino sagrado da deusa Matuka por falta de cuidados enquanto no vosso reino os nobres caçavam a cavalo, matando por desporto e vaidade.
Leopoldo II ergueu-se ofendido, sacudindo a mão direita, num gesto repetitivo como se pretendesse que o líder da Tribo se calasse e por fim explodiu:
-Que injustiça! Cometeis a indecência de me julgares pelas atitudes de meu pai? Como podeis permitir que o vosso rancor por questões que não são já do nosso tempo ou responsabilidade se sobreponham ao que deve ser feito?
Arnacles que até aí se mostrara atento mas calado, escusando-se a um silêncio ensurdecedor, cruzou os braços numa altivez descuidada e batendo as palmas das mãos nas pernas, interpelou:
-Quem sois vós para falares de justiça? Dizei-me na cara, o que haveis feito pela nossa Tribo, desde que haveis te tornado rei.
-Nada. - Anuiu o soberano mostrando pouco à vontade pela interpelação-Não posso ter feito nada porque não sou vosso soberano. Pergunto agora quantas vezes vós me haveis procurado para repor uma aliança perdida?
Os três homens permaneceram estáticos, com o general de Ischtfall sentado, sem saber muito bem o que fazer ou dizer. Rasmen sentia no seu intímo que a conversa havia feito cair qualquer propósito que o seu soberano tivesse esperançado levar daquela Montanha, mas com o olhar fincado no rosto do ancião mais idoso da Tribo, nada lhe ocorria, até que o idoso lançou um sonoro gargalhar que desarmou os ânimos quentes dos presentes:
- Curioso, - principiou ele a dizer, como se fosse um monólogo- Dois líderes se encontram para discutir a paz em momento de guerra e segundos depois eles próprios fazem a guerra. Como é esquiva e traiçoeira a paz, quando os homens que a podem defender trazem tanto ódio nos seus corações.
Leopoldo II recuperou a sua posse real e voltou ao seu lugar, como um miúdo a quem deram uma reprimenda e num encolher de ombros, desculpou-se:
-O meu perdão pela minha conduta, não era minha intenção faltar ao respeito nem a si, prezado Miorr nem ao vosso povo.
Saemon acusando o toque provocatório do soberano de ischtfall, fingiu ter sido para ele o pedido de desculpas, retorquindo entre dentes:
-Com efeito temos situações delicadas, ainda frescas no nosso passado comum que o tempo, quem sabe um dia curará. Rogo-vos que explicais o que realmente pretendeis da nossa Tribo.
Leopoldo II respirou fundo, cruzou as mãos sobre o colo e num tom fraterno, explicou:
-O exército de Orgutt chegará ao nosso reino, armará um cerco e provavelmente terá ao seu lado o exército do Senhor da Guerra. As últimas notícias que temos é que ambos estarão armados de catapultas e se tudo correr como expectável, será o 17º regimento a chegar primeiro ás nossas fronteiras.
-Continuai... - Convidou o ancião
-Acreditamos poder lidar com a defesa, até pela existência das nossas muralhas- o rosto do soberano de súbdito corou- e contamos, de acordo com a opinião do nosso general encarregue da defesa do nosso reino, provocar bastantes baixas.
-Mas precisam de lidar com as catapultas primeiro...- Observou Saemon.
-Correcto. 
-E não o poderão fazer de outra forma, senão abandonarem os vossos postos e abrirem o portão principal...
-Precisamente.... - Constatou Leopoldo II
-Então precisariam de uma unidade móvel, preparada para atacar a rectaguarda e inutilizar as catapultas. Preferencialmente sem serem vistas. - Concluiu o possante Arnacles.
Leopoldo II baixou a cabeça em tom de consentimento ante a perplexidade de Rasmen, que jamais tinha imaginado tal cenário.
-Em suma, - sintetizou o ancião- o que Ischtfall está a propor é bem pior que aquilo que inicialmente pensara. Estava a espera de um convite para que os nossos povos lutassem lado a lado. o que seria até irónico, para não dizer outros termos, mas o que nos propõe é duas vezes pior que o razoavelmente expectável.
-Para além de que, para podermos realizar essa tarefa, teríamos de passar por todo o exército inimigo, sem sermos vistos e inutilizar as catapultas, de novo sem sermos vistos ou ouvidos e regressarmos à Montanha como se nada fosse...
-Seria mais ou menos isso.... - Concordou o soberano de Ischtfall, enquanto retirava um documento enrolado do interior da sua capa.
-Mas pelos deuses isso é impossível! - Avisou o general ainda atónito.
-Para certos membros deste povo não! - Avisou Leopoldo II piscando o lho a Saemon.
Cerimoniosamente, o soberano abriu o documento, mostrando um mapa que ele mesmo desenhara. Um mapa de Ischtfall, onde se destacava a sua muralha e a previsão, segundo o soberano, das posições ocupadas pelo inimigo, bem como das posições das catapultas.
Saemon e Arnacles debruçaram-se sobre o mapa:
-Como podem ver, o único espaço para poderem manobrar as infernais catapultas será de frente para o portão principal. De seguida apontou para a proximidade da Floresta Negra. Pela Montanha, entrando na Floresta Negra saireis mais ou menos por aqui. Metade do exército encontrar-se-à concentrado no lado Norte, logo não terão dificuldade de alcançar as catapultas.
-Mas em terreno aberto- Observou o general de Ischtfall.
-Precisamente. - Concordou Leopoldo II enquanto voltava a piscar o olho a Saemon.
Foi então, ao virar o documento que o Líder da Montanha teve a certeza do quanto o soberano conhecia acerca do seu povo. Em caracteres perfeitos e a vermelho, escrito a pulso com pena de ganso, alguém relatava a façanha mágica e sobrenatural de certos elementos da Tribo, capazes segundo o mesmo documento de se tornarem invisíveis. O documento que havia sido escrito em Flurês, (mistura de dialecto Tribal com Arkhanês), só poderia ter sido escrito por um espião a mando do rei, estava endereçado a Leopoldo I e aconselhava o extermínio de tal povo, pela prática de bruxaria.
Atabalhoadamente Saemon forçou um sorriso, tentando relativizar o conteúdo e preparando-se para o negar, quando Miorr acrescentou:
-Somos um povo abençoado por Matuka. Um povo de paz e amante de todas as coisas boas da Natureza. Matuka nos dá certas....Habilidades e nós retribuímos cumprindo à risca aquilo que Ela nos pede. Claro que a nossa perícia na arte da caça, pois vivemos do que conseguimos caçar e da nossa astúcia em "desaparecermos" no meio da Floresta se deve mais a treino intensivo que a contos de fadas.
-Se o dizeis...- Leopoldo II parecia relutante em aceitar a explicação.
-Meu bom rei, se acaso fossemos capazes de tal proeza, já há muito tempo teríamos ocupado o vosso Trono.- Respondeu o ancião em tom de perfeita provocação.
-Muito bem. Posso acreditar na vossa presença diante de Orgutt?
O ancião limpou os lábios à manga do seu manto, como se tivesse acabado uma refeição e sem proferir qualquer abandonou o local, perante a estupefacção dos forasteiros e Saemon ocupou o lugar deixado vago por Miorr e sem rodeios concluiu:
-Haveis mencionado vezes sem conta o exército de Orgutt, haveis mencionado o exército do Senhor da Guerra e haveis habilmente transmitido o desespero pela integridade do vosso reino. Contudo, nem uma vez haveis mencionado o vosso receio por um ataque à Montanha ou o vosso medo pela integridade do nosso povo. Uma vez mais, o rei de Ischtfall procura escravos em vez de aliados.
-Mas eu vos mostrei o papel preponderante da vossa presença na defesa do nosso território...
-Do vosso território...
-Vos revelei o meu plano...
-Não. Haveis revelado uma loucura assente numa história infantil de magias inventadas.
-Mas, pelos Deuses, acaso não haveis percebido que caindo Isctfall , tudo em seu redor cairá?
-Talvez. Mas para isso o inimigo teria que subir a Montanha e duvido que as catapultas o façam.
Os dois homens ergueram-se parecendo dois galos prestes a lutarem até que por fim Leopoldo II voltou a guardar o documento, sacudiu o manto em tom de respeito e concluiu:
-Podeis acreditar que no dia da batalha vos esperarei. Até ao último raio de sol ou até que o nosso último homem caia, acreditarei na vossa presença no campo de batalha. Porque se isso não suceder, Arkhan desaparecerá.
-Não vos preocupeis!
Leopoldo II principiou a sorrir na eminência de um volte-face nas negociações:
-Arkhan poderá desaparecer, mas a Montanha ficará intacta!
O rei acusou a sentença como se de um murro no estomago se tratasse e enervado abandonou a habitação, esquecendo toda a regra de bons costumes, enquanto o general o seguia apressadamente.
-Pura perda de tempo!

1 comentário:

  1. Duelo diplomático de Titans!!! Adorooooo!!! Leopoldo levou um banho de humildade, será que o povo da montanhá se compadecerá?
    :)))

    ResponderEliminar