quarta-feira, 11 de outubro de 2017

A Saga de Arkhan - Livro 2 - Ischtfall - Capítulo 14




Sempre vivi no limbo, entre os Homens e os deuses humildes,
num equilíbrio frágil que anoitece com as sombras do mundo,
que adormece sempre com esperança , a sonhar utopias de dias melhores…

Inês Dunas
http://librisscriptaest.blogspot.pt/2013/11/sem-titulo-4.html



SAEMON



O vento acossava de sobremaneira a parca vegetação no primeiro pico da Montanha e Saemon, aguardando pacientemente que o soberano de Ischtfal e o seu general principiassem a descida e deixassem Citadell, encolheu os ombros, para de seguida chamar  para perto de si, o seu braço direito Arnacles.
O silêncio que reinara no centro da parca habitação foi quebrado lentamente, como se os seus ocupantes estivessem a acordar de um sono prolongado. Vendo que tinha a atenção de Arnacles, o líder da Tribo retomou o seu ar confiante e num tom de voz calmo e pausado, articulou:
-Todos nós ouvimos as novidades e Arkhan e uma vez mais percebemos que o que quer que possa suceder na planície, dificilmente nos afectará.
-Contudo, jovem líder vivemos numa montanha, não numa ilha!- Interrompeu o ancião que mascava umas folhas castanhas.
-Grande Miorr, não cuideis que pela simplicidade da minha argumentação eu esteja a desvalorizar o bem- estar do nosso povo. Mas, quer queira quer não, esta Montanha é o nosso isolamento de Arkhan. Não temos água a rodear-nos, mas temos ar e declives acentuados. Por outro lado, bem sabeis que nos invadirem seria uma tolice.
O ancião tirou mais algumas folhas da bolsa a tiracolo, mascando-as avidamente, de mão erguida em sinal de paragem e após cuspir ruidosamente o conteúdo da boca para o chão , retorquiu:
-Esta comunidade é apenas uma pequena gota de chuva, no "mar" de Arkhan. Não temos meios de subsistência própria, excepto alguns animais em cativeiro e a parca agricultura que o gelo ou inverno rígido não destruir. Temos regularmente de ir à floresta de Arkhan. Somos caçadores-recolectores e por mais queira esconder a Tribo, chegará o momento em que os nossos valentes guerreiros terão de descer a montanha e caçar o mais que puderem para nos abastecermos para o inverno.
-Sim, mas...
-Escutai ... Se hoje mesmo descermos a encosta e formos caçar à Floresta Negra sabemos com o que contamos e que não seremos atacados por Ischtfall, mas e se não houver Ischtfall amanhã? 
Saemon não respondeu, confiante que seria apenas uma pergunta de retórica e olhava impacientemente para Arnacles:
-Não. Não creio que a vossa decisão de ignorar o apelo de Leopoldo II tenha qualquer cabimento.
-Mas ele ainda nos toma por escravos!
-Mais uma razão para granjeares simpatia e respeito junto de quem desdenha de vós.
Arnacles tocando ao de leve no ombro do seu superior anuiu:
-Tem algum fundamento.
-Não. Ele sabe. O rei sabe! - Saemon esfregava a cabeça pensativamente.
Miorr centrou toda a sua atenção nos lábios do líder da tribo e como se temesse o pior aguardou:
-Estais certo disso?
-Todos vós aqui presentes o ouviram falar. Puderam se aperceber do conhecimento que ele já tinha sobre nós, nossos costumes e ainda proferiu a magia.
-Estais equivocado. Ele não pode ter sabido desse aspecto.
-"Para certos membros deste Povo", creio terem sido as suas palavras - Acrescentou Arnacles desconfiadamente.
-Meus caros, - Cortou Miorr voltando a tirar folhas da bolsa- São ainda poucos os de nós que dominam a arte de Matuka e nenhum domina na perfeição a invisibilidade. Tanto quanto o rei pode saber, se é que o sabe, é que certos elementos da nossa Tribo são de facto acima da média e podem ser valorosos em combate. Mas não creio ser a isso que o rei se referia.
-Que outra interpretação dareis então? - Inquiriu o Líder já nervoso.
-Ninguém em Arkhan conhece tão bem a Floresta Negra como os nossos guerreiros e se a questão é usara cobertura das suas árvores para um ataque dissimulado, então certos elementos da nossa Tribo o farão na perfeição.
-Sois então da opinião que deveríamos participar nesta batalha?
-Matuka nos ensinou a respeitar todas as formas de vida e a não interferir no destino delas, excepto para sobrevivência. Assim sendo e uma vez que não iremos para combate directo, que não alinharemos ao lado de Leopoldo II, mas antes faremos uma emboscada, não vejo nada que fira os mandamentos da nossa Deusa.
-Respeito os vossos argumentos, mas não voltarei com a palavra.
-Palavra dada de cabeça quente pode ser retirada.
-Não irei a Ischtfall!
-Mandai Arnacles!
Saemon não gostava do ancião, pois sabia do afecto que ele ainda guardava a Ischtfall e temia que esse mesmo afecto toldasse o seu raciocínio e uma vez mais intercedesse, embora de forma inconsciente pelo reino vizinho.
Tinha sido assim nos últimos tempos e sobretudo após a morte do rei Leopoldo I. Por duas vezes Saemon propôs ao Concílio deslocar-se a Ischtfall a fim de negociar a liberdade oficial do seu povo mas sempre foi travado por Miorr com vários argumentos que apesar de serem pouco consistentes receberam o apoio dos demais.
Inequivocamente a história de vida de Saemon está intimamente ligada com a Montanha. Não era um dos seus filhos nascidos no seio da Tribo, nem tão pouco de Ischtfall. Saemon era natural de Samerti, rumando à Montanha na louca corrida do ouro, mas após o primeiro inverno no pico mais gelado do aglomerado montanhoso, ele percebeu que dificilmente o seu espírito livre o deixaria sair. Apaixonou-se pela doutrina dos Ocultos, sempre se considerou diferente dos demais em Samerti e foi no seio das gentes da Montanha que descobriu que seria ali o teu local.
Ganhou o gosto pela caça, das emboscadas, o gosto indescritível de se perder na Floresta Negra horas e dias a fio, esperando a caça. Ganhou prazer de contacto e de olhar pelos outros. Ganhou a consciência social e sentiu que juntos, unidos atravessavam as dificuldades.
Não foi a Tribo que nasceu e cresceu com ele, mas sim ele que renasceu e cresceu com a Tribo.
Saemon lembrava-se de como tudo começou, cumprindo a vontade e o desejo de Leopoldo I na altura rei de Ischtfall, da construção de uma muralha imponente e grandiosa que servisse de defesa aos bárbaros do Povo do Gelo e simultaneamente exultasse o orgulho das suas gentes, homens livres rumavam à Montanha para dela extraírem a pedra necessária, cortando-a, preparando-a e descendo-a pela encosta da Montanha, onde na base operários e servos a colocassem na muralha.
Durante uns tempos iam e vinham diariamente, partindo do reino de madrugada e chegando exaustos ao fim do dia às suas habitações. Com o passar do tempo já pernoitavam na Montanha semanas e semanas. Passaram depois a ficar meses e meses isolados e habituaram-se ao seu micro-clima, até que deixaram de voltar e as mulheres casadas fartas da solidão abandonavam o reino para se juntarem aos seus pares na Montanha.
Com a descoberta acidental de ouro numa das suas encostas , homens e mulheres rumaram de toda a Arkhan dispostas a enriquecerem, esquecendo o rigor invernal da Montanha, largaram tudo e partiram para a Montanha, fundando uma pequena colónia a que deram o nome de Citadell e dedicaram-se então a outras actividades relacionadas com o trabalho do ferro e outros materiais , regressando a Ischtfall para venderem ou trocarem o que a Montanha lhes dava.
Mercadores ambulantes passaram a incluir Ischtfall como rota de comércio e a cunhagem de moeda real com a éfige de Leopoldo I
Cerca de dez anos depois, quando a construção da muralha acabou, o rei de Ischtfall ordenou que se aprofundasse a exploração mineira e que se fosse construída no cimo, instalações militares e outros órgãos de soberania régia.
O Povo da Montanha que até aí tinha sido deixado ao abandono pelo reino, que tinha sofrido com a peste animal, transmitida por roedores, não acatou a decisão do rei, uniram-se num primitivo Clã e elegeram os seus representantes. Três homens fortes, valorosos e com cultura foram os nomeados  pelo povo para formarem o Concílio da Tribo, tendo na pessoa de Miorr o seu representante máximo.
Seguiu-se uma corrida ao armamento! Deixaram apenas de fabricar as pequenas adagas, úteis para a caça e para o corte da carne animal, para fabricarem espadas com o melhor ferro e protecção para escudos, coletes e cotas de malha de ferro.
De estrangeiros, entretanto chegados à Montanha aprenderam técnicas de combate corpo-a-corpo e a caça desenvolvera a técnica do arco e flecha e reforçaram armadilhas naturais contra prováveis invasões.
Porém  a revolta foi inicialmente desvalorizada por Leopoldo I, que mal aconselhado por quem nunca tinha ido à Montanha achou que era um capricho e que em duas penadas ou invasões dos seus Nobres resolveriam a contenda até ao dia em que fartos de serem ignorados, os homens da Tribo mandaram um seu representante declarar guerra.
Um jovem orgulhoso, mal vestido e sem qualquer cuidado formal no uso das palavras foi recebido em chacota pelo palácio e pelo próprio que não só escarneceu de tal declaração, como mandou os guardas expulsarem o jovem, ordenando ainda que por piedade lhe dessem fruta para ele poder levar aos esfomeados da Montanha.
No dia seguinte  cerca de cem homens e mulheres surgiam diante dos portões de Ischtfall, bem armados e dispostos a morrerem ali mesmo se tivesse de ser.
Temendo uma guerra sem sentido, ou pior ainda uma humilhação real em caso de derrota Leopoldo I acabou aceitar tréguas, cedendo à pretensão do povo da Montanha sem contudo decretar por escrito a independência da Tribo e Saemon o jovem que fora ridicularizado pelo rei jurou que tal sucederia um dia.
Desde então foi subindo gradualmente na hierarquia da Tribo, chegando ao topo fruto dos treinos intensivos de combate, de caça 
Pousando violentamente ambas as mãos sobre os joelhos, Saemon advertiu:
-Muito bem, se essa é vossa vontade seguirei as pisadas do rei de Ischtfall e recuarei na minha palavra. Mas irei me apresentar como Senhor da Montanha. Não abdicarei da minha coroa.
O ancião sorriu ao de leve, voltando a cuspir os restos de folhas mastigadas para o chão, limpou a boca à manga do sujo manto e concluiu:
-Saemon, sois jovem, sois valente, sois um líder mas o orgulho é um manto pesado que carregais em vossos ombros. Afastai decepções passadas, como o sol afasta a noite todos os dias e negociai com o rei como um seu semelhante, mas sem que tentais impor a vossa vontade. Mesmo o sol, de tão presunçoso que é ao nos iluminar é tapado pela leveza das nuvens de vez em quando. Brilhai mas não provoqueis a cegueira nos outros e em vós!
Mordendo nervosamente o lábio inferior, Saemon agarrou o braço de Arnacles, tirando-o quase à força para o exterior e contemplando por momentos o sol, ordenou:
-Andemos que ainda chegaremos antes do rei a Ischtfall!








1 comentário:

  1. "Afastai decepções passadas, como o sol afasta a noite todos os dias" Tu porém, nunca me decepcionas, ler-te é sempre recompensador! :))

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