sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Lápide - capitulo 2



Desculpa sem remorso, destroço de alma,
palma de flores com cheiro a morte,
consorte do sofrimento, 
lamento sem motivo,
o mesmo sentimento esquivo e destrutivo de sempre...
Amar, sofrer, Amar, doer, Amar...
Morrer...

http://librisscriptaest.blogspot.pt/2017/10/prarabdha.html




REQUIEM PELO NOSSO SILÊNCIO


Bom dia cama vazia, lençóis imaculados de um lado da cama e quarto escuro, tão negro como a minha alma. Bom dia dor de viver, de me erguer, de ser zombie de mim mesmo, marionete viva sem qualquer alegria...Bom dia!
A garrafa de Chivas dorme na tua almofada, meia bebida, meia cuspida, meia lambida em suaves arrotos de circunstância. Onde está a tua roupa preparada imaculadamente desde a noite anterior, nas cavalgadas em calcanhares rudes e secos, nos tacões dos teus chinelos? Nunca percebi porque usavas aqueles chinelos de salto. Quem na sua plena consciência, mesmo tendo tu apenas um metro e cinquenta, todo aquele chinfrim era escusado. O que te ralhava, mas a verdade é que tu eras sempre a primeira a estar pronta. Não tinhas, creio eu o drama da barba, da rotina do Corega na dentadura, a leitura matinal das primeiras páginas dos jornais. E o café? As maratonas que fazias de chávena na mão, de um lado para o outro mastigando bolacha de aveia, espalhando migalhas como rastilho de teu caminho. Porque não te sentavas como nos primeiros anos, ao meu lado de olhos grandes como o nosso planeta, ávida de um sorriso. Oh, eu sei porquê! Porque já não te sorria, porque já não te olhava, porque...porque...Sei lá eu porque!
A indiferença nas pequenas coisas. Sim, talvez tenha sido essa a causa de morte, porque querida Leonor é de morte que se trata. Um luto pesado que agora carrego, a que me acostumo, a que me habituo. Um requiem de Mozart na partitura quebrada das coisas que não te disse, das pequenas pérolas que colocava no papel, mas omitia dos meus lábios. No entanto, ontem morreste, para mim, para nós. Talvez seja duro pensar assim, mas sinceramente é o primeiro pensamento que me vem à cabeça. Morreste, enquanto esposa e guardiã dos meus, teus nossos segredos. Pequenos segredos confidenciados ao longo de uma vida, de suspiros na ponta da orelha, de promessas e promessas que nunca cumpri. Paz à memória desses tempos!
Faço em sofrimento a peregrinação até à casa de banho, onde constato com dor que os teus pertences já desapareceram...
Eficiente, crime premeditado. Quanto tempo levaste a preparar tudo? Será que tiveste ajuda desse canalha que te levou? Hesitei e voltei ao quarto...Como lhe chamavas? Ah sim, o nosso ninho de amor....Pois. Abri o roupeiro da IKA que estava em promoção e que nunca consegui nivelar a abertura das portas, malditos ganchos triplos em forma de Y e constato que toda a tua roupa sumiu. As malas de viagem também, embora tenhas tido a decência de deixares a minha que levamos a Marrocos. Lembras-te de Marrocos? A nossa segunda grande viagem, nos primeiros anos de casados, do calor, dos chás de menta, dos teus joelhos despidos pousados na mármore da casa de banho, da tua boca saudando e provando o meu membro quente, pulsante, expectante...Ah, tardes de prazer, de ócio, de...memórias!
O que mais custa, constato agora que desço para a cozinha, é este teu cheiro a Trésor. Porque não o levaste contigo? Até quando vou ter que sentir a tua presença como um fantasma, uma agulha apontada à minha alma, prova viva da minha demência. Devia haver um aspirador de cheiros, com saco lacrado a chumbo, para que nunca mais se sentisse certos cheiros. Devia haver um castigo eterno, forma de purgatório para quem rompe um contrato de Deus. Porque serei só eu a sofrer?
O telefone toca ansiosamente na sala, a minha cabeça é uma manada de búfalos de cascos ruidosos e pesados , ao diabo com o telefone. Quem será? Serás tu, Madalena arrependida a implorar o meu perdão, que foste precipitada, que afinal isto entre nós ainda tem solução? Terás a voz embargada de choro, como quando ficas quando assistes aqueles filmes intragáveis, tragédias de faca e alguidar e eu terei de te dar uns segundos para que ouça claramente o teu pedido de desculpas?
 Ao diabo com o café, a máquina que espere pois um pedido destes salva um século de frustrações.
Tolice...como um homem é tolo no que ao coração diz respeito. Era a voz do meu patrão, a minha fonte de rendimentos e agora, como seria com a casa? Não está paga ainda, faltam umas letras....E o carro? Quererá ela o Mercedes que só usamos aos fim de semana, quando vamos a casa de pais dela. Afinal foi para isso que o comprei e paguei a pronto (ou quase dado que foi o patrão quem me adiantou, para eu brilhar um pouco em frente de sogro). O meu sogro, esse peneirento, cão de focinho triangular e dentes afiados. Lá porque trabalha no banco...Aquela presunção toda no momento do pedido da tua mão em casamento. lembras-te Leonor? Todo senhor não me toques todo oh sim, sou rico e tal e coisa e tenho duas casas e a minha filha está habituada a viver bem e o caro senhor, ao certo o que faz na vida? Canalha, por três vezes jantara naquela casa anteriormente e nessas mesmas três vezes ele me perguntara de sobrancelha erguida, estalando após a resposta a boca, como se a confirmar se a dentadura lá continuava e sorria. Um sorriso amarelo, de tabaco, de alcool, de falta de cuidado, quando eu sabia que a fortuna era dela, da minha santa sogra que nunca trabalhara um dia da vida dela.
Falei ao telefone o que tinha que falar, murmurei qualquer coisa poisa sabes porquê Leonor? Porque me esqueci que tinha de ir trabalhar hoje. Porque hoje ainda é a merda de uma Sexta-Feira eu que durante anos nunca faltei, que me submetia à rotina, mesmo com febre...Lembras-te querida de quando eu tremia com a gripe, que tu me empurravas para a rua, que tinha de ir trabalhar..Seria porque te cansava ou porque precisavas de estar sozinha?
Não olhes para mim assim, este meu último pensamento foi legítimo. Fidelidade! Eu sempre te fui fiel, excepto naquelas vezes de pensamentos obscenos e sonhos mal tratados. Nunca fui atrás de um rabo de saia, nunca te dei o menor pretexto, pelo menos até ao terceiro filho nascer. Não que depois não tenha sido, mas já não o era por convicção, mas porque estava velho. Velho e não lubrificado. Não que a mão esquerda não fosse alavanca, no accionamento manual, não porque faltasse empenho, mas a idade tornara a ponta e mola em canivete. Fosse como fosse, te dediquei os meus melhores anos, as minhas melhores ereções, as nossas melhores posições, qual big production Hardcore. Desenhava a tinta branca os limites da minha loucura no teu corpo, como um mapa em que X +X+X não marcam o local do tesouro, mas os jactos de prazer que as horas foram permitindo depositar.
Mas e tu Leonor Saraiva, terás sempre sido fiel? Aquelas horas infinitas em que saìas supostamente para o cabeleireiro e chegavas com dez centímetros de cabelo cortado, se tanto, protestando com as horas perdidas naquele espaço. Estarias de facto lá todo esse tempo? Sabes que nunca peguei no teu smartphone, acedi ao teu face ou sequer abri teu email...Mas deveria o ter feito...E que encontraria. Seria bom, pois assim continuaria a ser cornudo, mas faria uma cena...Ah que cena não faria! Mesas e loiças pelo ar, eu aos gritos no meio da sala ensaiando a posse de King Kong no alto do Enpire State Building, ameaçando partir tudo, estragar tudo, desfazer tudo, desferindo socos no ar com o mesmo empenho que  Ali despachava os opositores no ringue...Não, não sei se faria tudo isso, mas pelo menos não ficava com esta dor de vítima de estupro. Sim, agora que finalmente faço o café entendo tudo, no fundo talvez esta situação não seja um luto, mas um estupro. Violaste a minha confiança, o nosso ninho de amor, o nosso passado. Despiste-o e violaste-o com a maior da calma. Até pensaste em tudo, na roupa, nas jóias, na necessaire... Não sei como não levaste a louça, o sofá, o plasma, o teu tapete marroquino...Esse até entendo pois fui em quem o carregou ao ombro no Aeroporto de Marrocos. Violaste-me doce Leonor!
O telefone volta a tocar, já não tenho expectativas. Sei que não és tu! Um violador não liga à vitima, um fantasma não comunica por telefone e o meu patrão não quererá saber se a evolução da desculpa de minhas hemorróidas.
Do outro lado a voz sonante, a firmeza de quem te vai roubar, a crueldade de quem te espeta a faca. Senhor Ferreira Lobo, (porque os advogados têm todos nomes sonantes e estranhos? Claro doce violadora, estupradora de passados felizes, para brilharem na porta do consultório), diz que quer o melhor para nós, blá,blá,blá, evitar a burocracia e processo penoso, blá,blá,blá, que seria melhor me sentar com ele e contigo para ver como faremos o divórcio, blá,bláblá. Desliguei ou ainda ficava mesmo com Hemorróidas aos saltos.
Divórcio! É esse o nome que dão a uma vida conjugal desfeita em pedaços, qual Síria invadida.
Coço os tomates duas vezes seguidas, aproveito que agora não estás por cá (alguma compensação moral teria de ter, certo?), atiro a chávena para o lava-loiça e abro o meu portátil. Sim,caríssima esposa vou ao Google e digito divórcio, abro a Wikipédia, queres ouvir? Cá vai, Divórcio (do termo latino divortium, derivado de divertĕre, "separar-se") é o rompimento legal e definitivo do vínculo de casamento civil. Legal uma ova!
Tanta questão com a legalização das drogas, do aborto e casamentos dos padres e os canalhas neste país aprovam isto, esta dor, esta traição como legal! Legal...Malditas leis que colocam em causa a ligação divina. Bem sabes que sou religioso, católico Apostólico não-praticante. Sou assim para a Igreja uma espécie de Renato Sanchez que nunca sai do banco a não ser em ocasiões festivas. Aí sou chamado à pedra e sigo todo aquele ritual do "podem se sentar", "podem se levantar" e voltar a sentar e voltar a levantar...Divórcio!
Pois que seja, mas agora como me preparo para isso? Tu não perdeste tempo, pois não? Premeditadora de violações de casamentos, cabra de uma figa, de sexo quente e carente. Será que posso levar a tribunal o padre que nos casou, para jurar a pés juntos que proferira o "até que a morte os separe", ou a florista que adornou a nossa mesa nupcial com o termo "felizes para sempre". Poderei também levar todas as mulheres que me fizeram olhinhos, como aquela tua prima Susana de seios redondos e leggins justinhas, com o umbigo à mostra , ostentando um piercing daqueles que parecem brincos. Que idade teria ela? Vinte e dois, vinte e três? Lembras-te da tua cara quando ela colocou a mão na minha perna, e sorriamos os dois? Pois é, mas o que tu não sabes é que do meu lugar o decote dela não tinha segredos. O que tu não viste foi a mão dela apertando as unhas de gel na minha perna, um palmo ao lado do meu sexo. Como dizes? Se ele se ergueu? Se ele cresceu? Se bati uma nessa noite pensando nela?Pois agora não te digo, de castigo e não me obrigues a falar, ouviste?
Deito outra vista de olhos no Google e adivinha? 
"Divórcio - processo de divórcio por mútuo consentimento
https://www.portaldocidadao.pt/.../divorcio-processo-de-divorcio-por-mutuo-consenti...
18/06/2017 - Informações e possibilidade de realizar online a dissolução do casamento, sendo da competência dos conservadores do Registo Civil."
Vês, sua idiota, que mesmo pela internet precisas do meu sim. Vês como ainda precisas de mim? Porque no fundo sabes o que fizeste, como uma criança precisa de desculpa ou aprovação. 
Fecho o tampo do portátil, para a merda isto tudo.
Ouço o barulho de pés na porta, as chaves a rodarem na fechadura e a tosse de Maria, a empregada. Pois, hoje é Sexta-Feira. Olho para o meu aspecto no espelho da cozinha, sento-me pesadamente na cabeceira da mesa, o meu lugar ainda e sempre....Divórcio, Luto, Adeus...E sabes, choro convulsivamente como uma criança.

Odeio-te!!!





1 comentário:

  1. "Devia haver um aspirador de cheiros, com saco lacrado a chumbo, para que nunca mais se sentisse certos cheiros. " Pois devia e de objectos e de fotos e de pensamentos... Este registo está a surpreender-me de uma forma avassaladora, és genial, tu meu amigo precisas urgentemente de ser editado... O mundo anda cego... E surdo... E louco.

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