terça-feira, 21 de novembro de 2017

Lápide - capitulo 3





O mundo esquecerá os meus esforços, as minhas conquistas,as minhas derrotas
e sem revoltas, dor ou angustias
só terá uma recordação ténue do amor que se afasta

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Ewige Wiederkunft



O desencanto é o corredor em que a dor se move profunda e sinistra, como só a percepção humana a pode entender. Move-se qual aranha de cinco mil tentáculos, nos recônditos sombrios de uma mente confusa e corpo em declínio, enredando pequenos fios de teia invisível, ligações que só ela entende, aprisionando todo e qualquer raciocínio lógico e sugando a ilusão de que somos invulneráveis ao peso das memórias de anos passados, alimentando-se do choro sem lágrimas, desses núcleos de mágoa que se alojam no lado mais sombrio da mente e que martelam as "fontes" lado Este e Oeste de uma cabeça que sinceramente já viu melhores dias.
Há um lado negro que nos consome, que se apodera de nós, aguardando o momento certo, a altura indicada e aproveitando a confusão, para instalar o caos, o delírio e consequentemente deturpar o profanar tudo o que na construção de uma vida a dois se tinha de mais sagrado. Sobra a raiva, a mentira, a decepção! A suprema humilhação de inconscientemente nos termos entregue a alguém, construindo realidades virtuais em constelações tão fracas que abanam ao simples "olha, vou-me embora!". Somos figuras de plasticina moldada pelas mãos dos outros e desfeitas pelos nossos erros. O caminho lado a lado, só funciona num sidecar, até que qualquer acidente os separe, porque de resto não lado a lados, não há linhas rectas, paralelas à felicidade. Há apenas semi-rectas que nunca irão crescer o suficiente para se tornarem rectas.
Dou por mim deitado, levado para a cama como um ser senil, por quem só tinha o dever de arrumar a casa, atirado para um quarto  como um inválido,sem luz, tão insípido e escuro como estes meus dias, preso em pensamentos e memórias, um Ewige Wiederkunft, um eterno-retorno de Friedrich Nietzsche, sempre voltando à casa de partida, ao ponto em que pela primeira vez, doce Leonor, os nossos olhares se cruzaram. Eternidade! Para quê? Se não há um único motivo para querer regressar aos primeiros dias da primavera do nosso contentamento. Sim, prezada ex-esposa, partilhei contigo a alegria do nascimento dos nossos filhos, é uma satisfação e um orgulho enorme ter assistido aos seus primeiros passos, ás puberdades dramáticas Teen, aos primeiros empregos. Mas convenhamos, pai é pai enquanto toma conta e protege, depois que a auto-estrada da vida se lhes abre, somos apenas um posto, uma figura comemorativa a quem têm de ligar três vezes ao ano ( Natal, meu aniversário e dia do pai) e por muito que os ame de coração cheio e transbordante de alegria, já não os carrego ao colo, já não olho para os cantos da mesa ou para as tomadas à procura de pontas salientes ou orifícios sem protecção. Engraçado como nunca consegui tomar conta de mim, me aconselhar e me motivar, mas fiz um bom trabalho no que respeita aos três.
Mesmo assim, se voltássemos ao ponto de partida, ao dia 23 de Maio, tu sorridente e esperançada, eu hesitante e nervoso, depois de um mês a acordar duas horas mais cedo só para me assegurar que apanhava o mesmo autocarro que tu, que saía na mesma paragem poucos passos atrás de ti, que te espiava no canto da rua enquanto entravas na tua livraria e o dinheirão que gastava em livros, só para te falar, só para decorar o teu sorriso, as perguntas ensaiadas noite anterior que te fazia. Oh Leonor, como era doce o namoro no nosso tempo. As horas e energias gastas no planeamento, na antecipação das reacções, na procura de sinais de contentamento, aqueles pequenos sorrisos que poderiam ser casuais ou quiçá reflexo de qualquer tremor muscular, mas para o olhar de um apaixonado seria o confirmar de estar no bom caminho. Como era tudo mais complicado, mais moroso naquele tempo. 
Merda, não consigo perceber se te odeio de verdade ou se me odeio a mim. Como deixei as coisas chegarem a este ponto? Como poderia dar por garantido coisas que de facto não podiam depender só de mim. Como é vago o termo Amor, um fósforo raspado na emoção de um ou mais momentos, mas que se extingue rápido na falta de um oxigénio de tesão do momento que se volatilizou . Oh Leonor de seios pontiagudos e pernas finas, lembras-te de quando nos amávamos, das juras de amor eterno, dos beijos no parque, do meu colo em brasa, a tua cabeça deitada nele, a TV a debitar um filme qualquer que os meus olhos já não conseguiam ver, fruto da tua mão, como cobra silenciosa a invadir as calças, procurando o alto de tudo que incomodava o teu pousar de cabeça. As tuas costas voltadas para a TV, tu a aplicares um golpe de língua com o responsável por tal tormento....Ah, a paixão insana do prazer a dois.
Terceira tentativa de abandonar a cama, esta prisão de lençóis brancos que me suga as forças...Que me importa agora o Mundo, os filhos e que os outros pensam? Anos a fio a construir uma vida conjugal, a travar lutas diárias, a ceder em caprichos imediatos, a recuar em pretensões, a negar saídas com amigos, a equilibrar saldos de conta...E eu a tentar respirar! A aturar família alheia, festas de natal sem fim de queixumes e moléstias várias e eu a segurar as pontas, sempre calado, sempre sorridente, imaginando o rol de observações pós party que tu terias. Viagens sem sentido a todos os recantos idiotas no meio do nada, que tu fizeste questão de ir só porque viste  duas ou três fotos no google... E eu a tentar ser o pêndulo da balança da razão, a tentar não arfar, bocejar ou esbracejar sob pena de ter de levar com o teu olhar reprovador.
E agora? Sabes o que é engraçado nisto tudo? Pensei que a tua partida levaria a tua presença e apagaria as recordações de tudo. Pensei que a casa ficaria tão vazia quanto a nossa cama e eu sempre me deito deixando o teu lado imaculado, mas constato que nunca a casa esteve tão cheia ! Estás em todos os cantos, em todas as coisas, em todos os cheiros e em todas as gavetas que já não ouso abrir.
Estás, pura e simplesmente estás aqui e isso é uma merda. Sinto-me observado por ti, como se fosse um teste, um daqueles programas idiotas que gostavas de ver na TV ultimamente. Onde está a câmara? Quero sair disto. Onde será o confessionário? Quero desistir.
É mais fácil o saber te ignorar quando realmente estás aqui de carne e osso, do que isto. Como posso ignorar o que não vejo e só sinto?
Pára com isso Leonor...Volta. Eu juro que...Não, mais juras proferidas da boca para fora não! Eu tento...Sim, isso mesmo, eu tento estar mais presente nesse teu mundo, aplaudir as tuas pequenas coisas, compreender os teus anseios e devaneios, não reprovar as vezes que ultimamente acordavas a meio da noite e te masturbavas e eu claro, calhorda de mim, fingia dormir.
Deixa-me ser outro, deixa-me mudar. Mudo já...Em cinco minutos. Não sei se aceder a todos os teus caprichos me fará mais homem,  mais Humano, mais tolerante ou mais compreensivo, mas pelo menos este amargo de boca de ter sido abandonado, rejeitado como um animal ferido deixado à beira da estrada desaparece.
Irónico! Pela segunda vez a sopeira me vê a chorar abundantemente. O diabo da mulher não vai embora? 
Mas sabes que mais Leonor? Eu já não disfarço esta dor. Sento-me no balcão de cozinha, sem proferir qualquer palavra. Estou sujo, de cabelo desgrenhado, olhos molhados e descalço e o diabo da mulher entre frases inteiras que não ouço, senta-me à mesa, coloca à minha frente um prato de ovos mexidos, serve-me de vinho, chega-me o pão...E fala, fala, fala e eu nada oiço, ou se oiço não retenho a informação. Para que raio fala ela tanto, melhor dizendo, porque raio fala ela tanto? Sem pensar procuro a carteira no bolso. Deve querer o pagamento...Quanto? Sei lá, eras tu que lhe pagavas. Isso era o teu departamento, a tua função. Quanto recebe esta gaja?
Opto por comer, não vá o diabo da mulher enfiar-me isto goela abaixo como fazíamos com a sopa, com o nosso mais velho, na altura em que era pirralho, lembras-te Leonor oferecida?
Ela fala e fala e fala, que diabo pode ela mais querer? Tento levar o prato para outro lado, mas sou logo demovido pela mão dela e fala e fala e fala...Nunca se cala.
Não tenho maior remédio que a ouvir ou pelo menos fazer um esforço. Exactamente como fazia contigo quando chegavas extasiada das reuniões de tupperware todas as quartas à noite. Quando atiravas os sacos de plástico cheios de garrafas e objectos redondos e quadrados e que se amontoavam nos armários, como uma torre de Pizza ameaçando cair a qualquer instante e às vezes caíam mesmo, numa sucessão de ruídos desastrados.
Pouso o garfo e pela primeira vez reparo nela. Camisa vermelha com flores azuis de gosto dúbio, dois botões cimeiros desapertados. Calça cinza de botões. Brincos enormes, e relógio desses digitais, baratos de mostrador pequeno. Sapatos já gastos. 
Ela mostra sinais de estar a ser compreendida, talvez motivada pelo meu silêncio e dando a impressão de estar a recuperar o fôlego- Tenho de ser rápido...Digo que sim, que ela está absolutamente certa, que tenho mesmo de compreender isso, sendo que não faço a mais pálida ideia do que ela havia falado e levanto-me. 
Tento ser lógico e racional e tento lhe explicar que iria haver mudanças ali. Não sabia ao certo acrescentar que mudanças seriam, mas que não se preocupasse que iria meditar no que seriam os próximos dias, evitando lhe dizer que o que pensava naquele momento era em sair dali, encher a banheira e afogar-me, num mar de espuma.
E de repente querida Leonor, tão rápido como certos momentos de sexo que tivemos, encosto-a ao balcão do lava-loiça, beijo-a, apalpando os seus seios, metendo a mão dentro das calças, ela parece-me ter gritado, acho que a virei, a deitei na mesa, sinto o sutiã dela a subir por dentro da camisa. Terá gritado? 
Não sei, não me percebo, não a entendo, não sei de mais nada!



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