terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Lápide- Capítulo 6






Um dia a morte vencerá pelo cansaço
e eu vou olha-la nos olhos, perdoá-la e abraça-la!
Dir-lhe-ei ao ouvido que o amor não guarda rancor de ninguém
e tornarei a sua missão mais fácil, dar-lhe-ei a mão
e respirarei uma ultima vez sabendo que não guardo remorsos de nada.

Inês Dunas : Lápide


A DURA METADE

O compasso do passo do tempo perdido nesses anos de vida a dois que agora quero esquecer ainda me assombra na alvorada de um novo dia como o sibilar de uma cobra atormentando-me alma e a mente.
Passei secretamente da vontade louca de profanar a tua lembrança, invadir os teus sítios de culto que tinhas como mais sagrados na nossa "santa"casa, só para puro deleite do que outrora a tua presença significava, para um desnorte de prazer lascivo, repetindo à exaustão algo que deixara e dizer : Eu!EU!EUUU!. Não há mais nós ou tu. Apenas eu, apenas as minhas coisas, os meus desejos e os meus prazeres.
Consequentemente, lamento informar vossa excelência dona oferecida, saltadora de colos de homem e usurpadora de dores alheias que hoje não irei de novo trabalhar, nem amanhã e talvez nem depois pois me encontro retido nesta vontade louca de nada de útil fazer. Os ponteiros do tempo pararam, sei que é noite ou dia, sei se chove ou está sol, olhando pela janela e isso me basta. Não me quero, não me proponho, nem me esforço para o que quer que seja. Talvez já seja espectro amaldiçoado, ou qualquer figura construída de fumo, a dissipar-se lentamente pelas brisas das nossas memórias, desfeitas num sopro de sonolência e inquietação.
Após a tua partida, parva Leonor este castelo ficou nas mãos do meu caos ou da minha inércia, ou do meu desalento ou deste meu louco intento de querer à força cega te esquecer. Sem a tua presença rígida prezada minha ex-rainha severa,  tudo acontece devagar, como um plano lento de Frederico Fellini, um plano de dor e esquecimento, a preto e branco como deveriam ser as minhas memórias. Aqui para nós, deixa-me te confidenciar que a casa reagiu melhor que eu. Ficou tal como a deixas-te à espera do teu regresso. Acaso pensarias tu que a minha atitude seria idêntica? Pensarias tu, na tua mente de galinha, que após a tua partida repentina com um lembrete atirado para cima da mesa, eu faria a minha vida normal, sempre a mesma rotina a que me habituaste, dia após dia, e mais outro dia, em facadas imaginárias consecutivas?Não. Aposto que agora, neste preciso momento estás deitada de costas na tua cama, com o lençol branco imaculado a tapar-te o peito, enquanto vomitas um chorrilho de mentiras e/ou desculpas ao nosso filho mais velho, solicitando compreensão. Acontece estranha Leonor que eu não sei ainda o que poderei fazer ou se valerá a pena fazer o que quer que seja. Sei que te aconselhas-te, que te muniste do parecer de um qualquer advogado e só te resta capitalizar lágrimas de crocodilo nos ombros de quem devias dar o exemplo. Já eu, fui ao tapete por K.O. técnico, perdi-me na solidão da casa e entre as pernas da Maria, sou peixe de aquário às voltas sem me recordar do que acabei de fazer.
E este inverno gelado que não me larga os ossos e este inferno tortuoso  de ser dispensado da qualidade de marido, companheiro e confidente. Há quanto tempo não nos falamos? Não, digo falar de nós, dos nossos medos, dos nossos anseios, das nossas crenças. Há quanto tempo não vamos sozinhos ao cinema, jantar fora, pagar uma noite num hotel ou uma tarde só para...Há já muitos anos!
Esqueci por completo o teu filme favorito...Já não me recorda o nome, sei que era um desses filmes românticos baseados num livro desses escritores que desbobinam sentimentos em páginas como quem corta a carne no talho. E o teu prato favorito? Já não tenho a certeza qual seria. Esqueci-me! 
Vês tu saudosa coisa que ocupava a minha cama, que me esqueci! Como posso eu ter conseguido me esquecer disso e não conseguir te esquecer agora? A dor de ter falhado é uma merda.
Sinto o corpo quente da Maria ao meu lado, enquanto estou sentado às escuras na cama. Sim, ela já ocupa o teu lado da cama. Sei o que estás agora a pensar...Rainha Morta cama disposta...Não, não é a mesma coisa. A tua presença nesta cama, ao meu lado foi abençoada por deus nosso senhor, na igreja no momento do sim. Esta Maria foi abençoada pela minha loucura em tudo diferente e no entanto em tudo igual. Descubro agora que sei tanto dela como sei de ti e isso aflige-me ainda mais.
Sei que ela geme, berra, morde e me bate. Sei que ela se escorre nos meus dedos e no meu sexo como uma adolescente endiabrada e sei que ela gosta de sexo bruto, forte e insano e agrada-me ter conseguido a energia apara tão louca dança, já tu do que gostas mesmo? Não sei, sempre o fizemos uma vez por semana no tédio do tem que ser ou do vamos lá ver se ele levanta todo. Não te ouvi ais ou uis, não te vi corar ou gemer perdidamente, nem tão pouco te vi o rosto após a "dança". O que vi foi a tua pressa em subir as calças de pijama, o puxar do lençol e o virar costas enquanto eu me esforçava por recuperar as minhas calças no fundo da cama.
Será que se eu te tivesse violado na cozinha, se eu te tivesse aberto as pernas à força e tivesse penetrado a tua vagina com toda a minha fúria animal tu desistirias de me abandonar?
Não me lembro de ter feito contigo, metade da loucura que fiz com esta estranha Maria durante esta noite. Por fim ela adormeceu mas eu não consigo. Quando foi a última vez que fizemos anal? Sei lá, isto é tão digno de macho parvo, achar que tudo se resolveria com uma queca ou duas ou três. Pensar que poderias mudar de ideias apenas porque te violei, não só é parvo como demonstra o estado animal a que cheguei. Sabes Leonor, se me ouvisse agora acho que também eu me abandonaria. Retalhava-me aos bocados e quedava-me numa valeta qualquer esperando que cães ou ratos me comessem.
Oxalá fosse primavera e não inverno....Oh Leonor, lembras-te daquela tarde de primavera, a nossa primeira primavera enquanto casados em que regressávamos da casa dos Batistas, (Esses trastes armados em gente fina) e riamos da falta de cultura do Armandinho  ao confundir Moliére com a personagem do livro "o que diz molero" a obra magnífica de Dinis Machado logo após o 25 de Abril, transformado numa peça de teatro medíocre que tivemos o infortúnio de ver. " Pois têm de vir ver, afinal Moliére e o teatro tem tudo a ver. O que diz Moliére deve ser interessante!". Tu de vestido azul, no carro a meu lado sentada. O semáforo vermelho, a minha mão na tua perna e o teu convite, mostrando-me o que querias numa abertura de pernas em V convidando-me a explorar, a subir a mão e o semáforo ainda vermelho. Lembras-te da tua mão a apertar-me o sexo por cima das calças, os teus dedos a soltarem-no e a tua boca a usá-lo? Lembras-te da expressão da minha cara quando descobrimos no dia seguinte as manchas do crime no assento e tablier...Pois, o trabalho que aquilo deu para limpar.
Maria acorda por uns minutos, procura-me na cama com a mão esquerda, beija-me o peito nu e volta a adormecer. Ocorre-me fazer-lhe festas no cabelo, dizer algo baixinho ao ouvido dela. Talvez até lhe retribua os beijos, acompanhados de um sorriso franco e aberto mas não estou para isso. Sentir a tua falta numa cama já ocupada e ocupar a minha mente com estas palavras que  nunca lerás e que no entanto eu me esforço tanto para as dizer só significa que este luto não passa e se nem com sexo eu te esqueço então mais vale matar-te de vez!
Não literalmente que já estou velho para ser um psicopata assassino doido da cabeça ( e seria tão fácil alegar insanidade do momento, quem sabe em dois anos estava cá fora), mas matar este misto de raiva e dó de mim e só o consigo se fizer exactamente o oposto daquilo que esperavas que fizesse. Sei que esperas luta da minha parte, sei que tentas antever os meus passos e esperas que eu vá a correr ao teu advogado, (Qual era mesmo o nome do crápula? Eu sei lá, eles são todos iguais), ou esperas que vá todos os dias trabalhar, desabafar com colegas e patrão, pedindo opiniões, solicitando ajuda. Mas não, não vou fazer nada disso.
Saio da cama apressado e motivado com esta ideia. Esta nova ideia de ser eu, de me renovar. Claro, como poderia ter sido tão parvo?.
Visto-me a pressa ( não ligues à conjugação de cores ) e saio para a rua. Pela primeira vez desde que me deixaste que saio à rua. Desço apressadamente a rua e consulto mostrador digital do relógio da farmácia da esquina. São quatro da manhã, não chove mas faz um frio de morrer. Tiro atabalhoadamente a carteira do  bolso do meu casaco e coloco à pressa o cartão multibanco da nossa conta no ATM, demora imenso tempo até conseguir seleccionar no visor o pedido de saldo e solto uma risada histérica em pleno frio nocturno.
Tu minha cara cabra Leonor tiraste exactamente metade do dinheiro que tínhamos na conta, em três operações de ATM ( mas porque te dei eu o visa desta conta?), deixando-me o conforto da minha metade. A dura metade. A metade que já não te interessa, que já não te pertence. E agora vais serrar a casa e o carro ao meio também? E os filhos? Também os serrarás ao meio, enviando-me a outra metade pelos CTT? 
Pois então é exactamente isto que esperas de mim. Que seja uma metade gasta, uma metade parva e obsoleta de um todo que um dia deixou de ser suficiente para ti. Parva Leonor, eu não serei metade de nada, mas sim um monte de pequenas merdas que viverá cada dia diferente do até aqui. Não posso, como deves perceber continuar a viver naquela casa, nem tão pouco voltar aos sinistros corredores do escritório, sentar-me à minha secretária repleta de fotos nossas. Não!
Não sei o que vou fazer ou quem vou ser daqui para a frente, mas sei que aos poucos deixarás de estar presente e então eu me irei rir disto tudo e viverei o tempo que me resta feliz no meu canto.








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