a vida é uma louca passagem
que só nos traz bagagem...
Gemido engolido pela racionalidade.
Não podemos ter tudo o que queremos...
Inês Dunas: Bife Tártaro
E AGORA PÁ?
O tempo arrastava-se
devagar, como uma marcha fúnebre ensaiada para propositadamente dar o ambiente
pesado à comoção dos meus dias.
Aprendera neste curto
estado de tempo a gerir as dores dela e o nosso infortúnio com uma destreza
física digna de qualquer ginasta e o dia-a-dia era o meu arame, que percorria
de braços esticados e guarda-chuva aberto, para que o equilíbrio de quem fomos
e seremos se mantivesse.
Às vezes, só às vezes,
procurava no meu silêncio novas palavras que nunca lhe dissera e acercava-me de
mansinho, com medo que tal procedimento a assustasse e proferia ao seu ouvido a
jóia que acabara de descobrir e ela claro, louca das minhas loucuras e àvida
dos meus devaneios ria e sorria consoante o esgar de dores lhe permitisse e
escondia dos meus olhos, a crispação das marcas que noites e noites acordada
lhe deixavam não só no rosto, mas sobretudo no olhar perdido e vago que
ostentava sempre que ficava só.
Por esses dias
resguardava-me sempre que podia no meu “pomar” assim dito como se fosse uma
extensa área de árvores de fruto, quando mais não eram que quatro formosas árvores,
duas delas ( os meus orgulhos) com excertos de fazer inveja a muito bom
agricultor. Mas fugia para ali, não propriamente para cuidar das ditas, que
nisso o Salvador com a sua destreza de mãos e conhecimento vivo da arte o
fazia, mas para tão-somente organizar ideias, recuperar forças e ocupar o meu
espírito com longas conversas com Salvador. Ah, Cara Mia se soubesses as longas
dissertações que tal criatura proferia sobre a vila e seus habitantes, acharias
que daria pois por bem empregue essa minha fuga e esse meu tempo gasto à socapa
da tua presença.
E foi então, nessa fria
tarde que o vi. Corriam os primeiros raios de sol do início da primavera , mas
era ainda um sol de abril, fraco e distante como o tempo antes de entrares na
minha vida. Vi o seu rosto pela janela do carro e não precisei de segunda
confirmação para o identificar. Um pai conhece sempre os seus filhos e a
tesoura da poda quedou-se estática e inerte na minha mão. Creio, mulher da
minha vida, que nunca te cheguei a contar pormenorizadamente este nosso
reencontro, até porque não te pretendia maçar o teu tempo com imensos detalhes,
mas aproveito para te contar agora.
Álvaro estava crescido,
era já homem de barba áspera sobre o rosto, que lhe cobria as imperfeições do
Acne que outrora lhe marcaram a adolescência e de início não percebia como
diabo ele me encontrou ali. Exactamente ali, ali…O sítio que eu escolhera para
refúgio de tudo, para longe da tua dor, da minha impotência no aliviar dos teus
sintomas. Ali, o sítio que comprara para fugir aos teus esgares de dor e às
correrias dos ponteiros do relógio, em que imóvel ao teu lado te via definhar,
mesmo durante as curtas pausas em que dormias. Não! Ali não era nem o momento
nem o local para tal reencontro. Pousei o utensílio de corte, sacudi as mãos,
como para me certificar que nada levava daquele quadrado sagrado e sem proferir
qualquer palavra a Salvador dirigi-me a ele e de mãos nos bolsos expus-me aos
seus critérios, ao seu juízo de valor e ouvi da sua boca os disparates sobre os
ter abandonado, sobre o meu falso amor, a minha falsa paixão. Que diabo, como
podia explicar ao miúdo que só se sabe o que é o amor, depois de ser pai. Até
esse momento o amor é coisa vaga, algo lírico, uma mentira de S Valentim, uma
cuspidela arrogante do capitalismo…E vendem-se livros e fazem-se filmes e inventam-se
baladas para nada
Não há, nem existe no
Mundo, ou mesmo neste Universo maior amor que segurar uma criatura recém-nascida
nos braços e saber que de certa forma somos os responsáveis pela existência de
tal Ser. O sorriso, o choro, o cheiro a recém-nascido e hipotéticas fraldas
sujas, nada se sobrepõe ao amor incondicional enquanto Paeter desse Ser. Levei
algum tempo a perceber isso mesmo, passei uma vida alheio das minhas
responsabilidades e de certa forma, enquanto homem, vivia distanciado, direi
mesmo, colocado à margem de todo este amor, de tal forma, que Cara Mia, chegava
por vezes hipoteticamente e na distância que a minha ex obrigava a ser o gajo
que ganhava para o sustento das criaturas e por incrível que agora pareça, no
meu cérebro, na minha mente eu tinha consciencializado que seria apenas isso.
Mas não, contigo,
paixão da minha alma eu percebi que o amor é aquele amor que nos obriga a sonhar
acordados, ou a acordar a meio da noite e permanecer três dias com um sorriso
parvo no rosto só porque sonhei connosco a ver estrelas ou algo assim. O Amor é
saber que não obstante sermos mortais, temos a imortalidade dos momentos
gravadas a dourado no pensamento e que jamais, mesmo que o corpo apodreça,
mesmo que a carne desapareça, isso será apagado da minha alma.
E ele contava-me no
seu tom de voz duro que eu reconhecia tão bem das suas birras na infância, a deliciosa história do abandono do lar de portas abertas que eu propositadamente deixara e de como o interior tinha sido alvo de larápios, das intempéries, em que a água da chuva tomara de assalto formando verdadeiras poças de água nos divinos, caros e pesados tapetes que a minha ex-mulher, senhora sua mãe tão orgulhosamente os gabava. E falou-me, do alto da sua sapiência, do cimo do seu metro e noventa, da minha indelicadeza em ter sumido do mapa, na viatura que ela tanto gostava, entregando a sua mãe de mão beijada, no desespero da minha partida, nas mãos de um crápula que lhe batia deixando-a com marcas visíveis na alma e no corpo e eu calhorda e cobarde, aparentemente sem remorsos de toda uma vida vivida e com filhos criados, perdido que estava por uma paixoneta fetiche, própria da crise da minha meia-idade,(como tão bem a sua mãe me diagnosticara, com base nos seus vastos conhecimentos adquiridos na revista Maria), ter abandonado tudo e todos, sem qualquer ponta de rancor. Só podia, na opinião da dita senhora, ser algum problema mental ou pior, qualquer evocação de uma poção mágica misteriosa que a bruxa da empregada me tenha dado a beber.
Tudo isto ouvia eu calado, sentado na mesa quadrada do café da aldeia, para onde o levara, bem em frente ao andar que ocupava com essa minha suposta paixoneta. Olhava-o volta e meia de soslaio, na ânsia que cada palavra por ele proferida fosse o final do seu monólogo, mas ele continuava e eu desesperava pela quantidade de oxigénio que a criatura gastava em vão.
Quando finalmente, após ter pousado a chávena de café no pires ele se calou e refastelando-se na cadeira aguardou o contraditório, provavelmente convencido que da minha boca sairiam mil e uma desculpas em catadupa, num arrependimento mortal próprios de uma mente confusa ou deturpada, sorri e brincando com a minha curta barba apenas lhe perguntei, sem qualquer ponta de maldade ou cinismo:
-És feliz?
-Que...Não estamos a falar de mim pai!
-Não. Estamos a falar de mim, mas para que me compreendas preciso que me respondas.
-Se sou feliz? Sei lá isso é relativo e nem penso muito nisso.
-É como a morte. Nunca pensamos muito nisso até ela chegar...
-Pai, não desconverses! A verdade...
-A tua verdade, aquela que te puseram nessa cabecinha é que eu olhei para o cu da nossa empregada e num acesso de loucura saltei-lhe em cima, depois meti-a no carro e trouxe-a para aqui para me servir dela até me fartar, certo?
O pequeno grande homem, (porque no fundo, apesar de toda a sua altura e idade não deixava nunca de ser o meu menino, a minha criança feita cada vez mais à imagem e semelhança da cruela sua mãe), olhou-me incerto sobre o meu aparente sarcasmo e porque já havia sido previamente formatado por ela, concordou num sorriso amarelo:
-Algo desse género.
E demoradamente, com todas as pausas do mundo para que ele pudesse assimilar na amplitude máxima da magia da minha descoberta numa nova realidade a dois, que talvez fosse alternativa mas nunca ficcional, lhe narrei o verdadeiro abandono. O da sua mãe, que me deixara perdido e desnorteado. Que me descartara, acabado, rasgado, comido e cuspido numa vida a dois, a três e a quatro sem sentido, num lar que não era um lar, mas uma ala psiquiátrica do mais denso nível e de uma vida presa a um emprego que nunca fora verdadeiramente o meu, mas a minha prisão física e mental. O abandono, a fuga para a frente que ela escolhera, junto de um novo prisioneiro, um novo canalha, sem uma conversa franca, sem uma justificação, sem um testamento de vontades, mas com telefonemas de advogados....E graças a Deus, aos santos e a todas aquelas divindades criadas na imaginação humana que tal sucedeu.
-Sabes, - Contava-lhe eu com o mesmo tom de voz que usava na sua infância para lhe explicar o mundo- Somos tão formatados por tudo o que nos rodeia e nos deprime, tão cegos pela falsa luz de uma razão qualquer que nos atiram para cima que raramente nos apercebemos que a felicidade é um pequeno passo. Bem sei, pobre rapaz , que parece uma frase feita sacada de qualquer livro de auto-ajuda, mas nem sempre temos o dom da palavra que nos permita com exactidão descrever tudo aquilo que o coração debita à nossa mente.
Vi-o a ir ás cordas, a aproximar-se de um K.O. técnico e justo na nova realidade das coisas que foram assim e não como lhe contaram, mas este não era mais o meu ringue, as lutas do passado, as vivências do que foi e do que se sucedeu já não eram tema de debate na minha mente e sem laivos de misericórdia falei-lhe da doença que consumia a minha companheira, de como mesmo estando ela dependente de mim, eu continuava dependente dela, sempre sequioso dos seus beijos, dos seus afectos, da sua companhia. Falei-lhe do estado terminal da doença, do talvez seja breve, talvez ocorra numa noite destas que surgirão ameaçadoras, ou talvez ainda dure mais uns anos. Talvez o destino, esse senhor de todas as coisas, permita que eu a carregue o colo, areia dentro para saborearmos o mar uma última vez, ou talvez adormeça nos meus braços e Morfeu a leve de mim e era precisamente essa incerteza que me fazia amá-la em cada segundo da minha vida, que me trazia a certeza que quando essa hora chegasse eu não estaria obviamente preparado mas ficaria em mim a certeza de em todos os momentos em que estivemos juntos, sempre ter guardado os melhores momentos que ocupariam a minha mente nas noites em que solitariamente me deitasse já sem a sua companhia.
Contei-lhe ainda como em todos estes anos ela havia moldado o ser imperfeito que sempre seria, na perfeição dos seus olhos e no modo como me olhava, como se eu fosse a Torre Eiffel, ou qualquer monumento consagrado e que isso acarretava a certeza de finalmente saber o que é ser amado e que se ele estava ali, à minha frente era precisamente devido à arte e engenho de quem, temendo partir deste mundo a qualquer momento, possibilitar que de certa forma eu me pudesse reunir ao meu passado e abrir as portas do meu coração aos meus filhos, numas contas a ajustar não só comigo mesmo, mas com eles.
Ele demorou o seu tempo, de rosto contorcido na incerteza dos sentimentos que lhe assombravam os vestígios remanescentes de raiva que rapidamente se dissipava do seu rosto e num tom de voz pesaroso indagou a medo:
-Então és feliz?
-Todos os dias e a cada segundo desde que a tomei nos meus braços.
- Desculpa pai...
-Devias a ter visto a dançar, nos seus dias de glória e loucura. - Desabafei orgulhoso da memória visual que me assaltava o espírito
O pequeno grande homem pousou a mão dele sob a minha mão enrugada, apertando-a ao de leve e olhando-me intensamente, perguntou por entre os finos lábios:
-Então e agora, pá?
Tudo isto ouvia eu calado, sentado na mesa quadrada do café da aldeia, para onde o levara, bem em frente ao andar que ocupava com essa minha suposta paixoneta. Olhava-o volta e meia de soslaio, na ânsia que cada palavra por ele proferida fosse o final do seu monólogo, mas ele continuava e eu desesperava pela quantidade de oxigénio que a criatura gastava em vão.
Quando finalmente, após ter pousado a chávena de café no pires ele se calou e refastelando-se na cadeira aguardou o contraditório, provavelmente convencido que da minha boca sairiam mil e uma desculpas em catadupa, num arrependimento mortal próprios de uma mente confusa ou deturpada, sorri e brincando com a minha curta barba apenas lhe perguntei, sem qualquer ponta de maldade ou cinismo:
-És feliz?
-Que...Não estamos a falar de mim pai!
-Não. Estamos a falar de mim, mas para que me compreendas preciso que me respondas.
-Se sou feliz? Sei lá isso é relativo e nem penso muito nisso.
-É como a morte. Nunca pensamos muito nisso até ela chegar...
-Pai, não desconverses! A verdade...
-A tua verdade, aquela que te puseram nessa cabecinha é que eu olhei para o cu da nossa empregada e num acesso de loucura saltei-lhe em cima, depois meti-a no carro e trouxe-a para aqui para me servir dela até me fartar, certo?
O pequeno grande homem, (porque no fundo, apesar de toda a sua altura e idade não deixava nunca de ser o meu menino, a minha criança feita cada vez mais à imagem e semelhança da cruela sua mãe), olhou-me incerto sobre o meu aparente sarcasmo e porque já havia sido previamente formatado por ela, concordou num sorriso amarelo:
-Algo desse género.
E demoradamente, com todas as pausas do mundo para que ele pudesse assimilar na amplitude máxima da magia da minha descoberta numa nova realidade a dois, que talvez fosse alternativa mas nunca ficcional, lhe narrei o verdadeiro abandono. O da sua mãe, que me deixara perdido e desnorteado. Que me descartara, acabado, rasgado, comido e cuspido numa vida a dois, a três e a quatro sem sentido, num lar que não era um lar, mas uma ala psiquiátrica do mais denso nível e de uma vida presa a um emprego que nunca fora verdadeiramente o meu, mas a minha prisão física e mental. O abandono, a fuga para a frente que ela escolhera, junto de um novo prisioneiro, um novo canalha, sem uma conversa franca, sem uma justificação, sem um testamento de vontades, mas com telefonemas de advogados....E graças a Deus, aos santos e a todas aquelas divindades criadas na imaginação humana que tal sucedeu.
-Sabes, - Contava-lhe eu com o mesmo tom de voz que usava na sua infância para lhe explicar o mundo- Somos tão formatados por tudo o que nos rodeia e nos deprime, tão cegos pela falsa luz de uma razão qualquer que nos atiram para cima que raramente nos apercebemos que a felicidade é um pequeno passo. Bem sei, pobre rapaz , que parece uma frase feita sacada de qualquer livro de auto-ajuda, mas nem sempre temos o dom da palavra que nos permita com exactidão descrever tudo aquilo que o coração debita à nossa mente.
Vi-o a ir ás cordas, a aproximar-se de um K.O. técnico e justo na nova realidade das coisas que foram assim e não como lhe contaram, mas este não era mais o meu ringue, as lutas do passado, as vivências do que foi e do que se sucedeu já não eram tema de debate na minha mente e sem laivos de misericórdia falei-lhe da doença que consumia a minha companheira, de como mesmo estando ela dependente de mim, eu continuava dependente dela, sempre sequioso dos seus beijos, dos seus afectos, da sua companhia. Falei-lhe do estado terminal da doença, do talvez seja breve, talvez ocorra numa noite destas que surgirão ameaçadoras, ou talvez ainda dure mais uns anos. Talvez o destino, esse senhor de todas as coisas, permita que eu a carregue o colo, areia dentro para saborearmos o mar uma última vez, ou talvez adormeça nos meus braços e Morfeu a leve de mim e era precisamente essa incerteza que me fazia amá-la em cada segundo da minha vida, que me trazia a certeza que quando essa hora chegasse eu não estaria obviamente preparado mas ficaria em mim a certeza de em todos os momentos em que estivemos juntos, sempre ter guardado os melhores momentos que ocupariam a minha mente nas noites em que solitariamente me deitasse já sem a sua companhia.
Contei-lhe ainda como em todos estes anos ela havia moldado o ser imperfeito que sempre seria, na perfeição dos seus olhos e no modo como me olhava, como se eu fosse a Torre Eiffel, ou qualquer monumento consagrado e que isso acarretava a certeza de finalmente saber o que é ser amado e que se ele estava ali, à minha frente era precisamente devido à arte e engenho de quem, temendo partir deste mundo a qualquer momento, possibilitar que de certa forma eu me pudesse reunir ao meu passado e abrir as portas do meu coração aos meus filhos, numas contas a ajustar não só comigo mesmo, mas com eles.
Ele demorou o seu tempo, de rosto contorcido na incerteza dos sentimentos que lhe assombravam os vestígios remanescentes de raiva que rapidamente se dissipava do seu rosto e num tom de voz pesaroso indagou a medo:
-Então és feliz?
-Todos os dias e a cada segundo desde que a tomei nos meus braços.
- Desculpa pai...
-Devias a ter visto a dançar, nos seus dias de glória e loucura. - Desabafei orgulhoso da memória visual que me assaltava o espírito
O pequeno grande homem pousou a mão dele sob a minha mão enrugada, apertando-a ao de leve e olhando-me intensamente, perguntou por entre os finos lábios:
-Então e agora, pá?
Se tu, algum dia deixares de escrever, eu juro, mesmo, que te bato... Sempre bom ler-te, pensar e vestir-me das tuas estórias, das tuas letras, um pouco de ti!
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